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GENTE DO MUSIC-HALL

O Casino palpitava. Tantan Balty, no seu último número, dissera, com quebros de olhos e perversidades na voz, uma cançoneta extraordinariamente velhaca. A sala, sob a clara luz das lâmpadas elétricas, acendia-se, gania luxúrias. Senhores torciam o bigode com o olhar vítreo, as damas envolviam os braços nas plumas dos boás com um ar mais acariciador. Nós estávamos todos. Na orla dos camarotes, pintados de vermelho, pousavam em atitudes de academia, expondo vestidos de tonalidades vagas e anéis em todos os dedos, as mais encantadoras criaturas da estação. Por trás dos camarotes surgiam panamás, monóculos, faces escanhoadas, bigodes à kaiser, e os garçons passavam de corrida levando garrafas e bandejas. Embaixo, na platéia, velhos freqüentadores tomando bocks, repórteres, caixeiros, moços do comércio batendo as bengalas nas folhas das mesas, uma ou outra mulher entristecida e a claque, uma claque absurda, berrando chamadas diante dos copos vazios, quase no fim da sala.

Tantan Balty voltara, resfolegara, e com as duas grossas mãos no lábio rubro, parecia querer beijar toda multidão. Afinal, a campainha retiniu e o velário correu, cerrou-se sobre uma última graça de Tantan. Tinha acabado a segunda parte. Havia um rumor de cadeiras, de estampidos de rolha, de copos entrechocados, por todo o hall As lâmpadas elétricas tinham uma medonha trepidação, como se fossem grandes borboletas de luz presas de agonia a bater as asas brancas.

No camarote de boca, solitários e de smoking, fui encontrar o barão Belfort e o conde Sabiani. O conde era um homem alto, de torso largo, bigode espesso. Tinha a fisionomia fatigada e flácida. Olhando o seu turvo olhar, logo me vieram à mente as coisas tenebrosas que a respeito correm. O barão, porém, contava com um ar desprendido a história de Tantan Balty, que ele conhecera numa bodega de Toulouse, em 1890, já velha e já gorda. Parou, sorriu:

– Seja bem-vinda a virtude entre o crime e o vício…

O conde Sabiani estendeu a sua mão cheia de anéis, consultou o programa preguiçosamente.

– Temos agora a princesa Verônica. Per dio! Quelle femme, mon petit!

Disse isso como um obséquio, endireitou o punho, recostou-se. Usava uma pulseira de pequenas opalas com fecho d’oiro. O barão sorrira novamente, endireitando os cravos da botoeira.

– Conhece a princesa Verônica?

– A princesa? Há de concordar, barão, que de certo tempo para cá, o Rio tem uma epidemia de titulares exóticas…

– Que quer? É a civilização. E quase todas mais ou menos autenticas! São as titulares de Bizâncio, meu caro. Consulte os programas dos casinos e as notas dos jornalecos livres. Há princesas valacas, príncipes magiares, condessas italianas, marquesas húngaras, duquesas descendentes de Coligny, fidalgas do Papa – a marquesa de Castellane, a princesa russa, a condessa de Bragança, a princesa Tolomei, Gladys Wright, mulher de um lorde, a princesa Thrasny, todas com um título que lhes doura a arte e a renda. O Rio não seria cosmopolita se não as tivesse. A grande preocupação dessas admiráveis criaturas é convencer os amigos com documentos fartos de que são mesmo descendentes de famílias ilustres, e a sociedade fica convencida porque isso satisfaz a sua imensa vaidade. Nós estamos exatamente como na corte de Justiniano, em que Teodora, dançarina de circo, era imperatriz. E isso é prodigiosamente agradável ao burguês que paga, à turba que olha, e ao princípio imanente da beleza e da democracia. Não há comerciante triste depois de ter pago jóias a princesas. Estas formosas deusas, que o povo admira e inveja, puseram os brasões ao alcance de todos os lábios. São as princesas de Bizâncio, caro. Sagrou-as o bispo de Hermápolis.

O conde Sabiani sorriu com perversidade e literatura.

– O barão faz a iniciação dos puros?

Belfort não respondeu. Já começara a terceira parte. O bumbo dera uma pancada grossa, e os violinos da orquestra faziam uma escala de pizzicati, sustentados pelas longas e sensuais arcadas dos violoncelos e do contrabaixo. O velário de púrpura descerrou-se por sobre uma paisagem lunar. Os cenários estavam tão apagados à luz de leite das lâmpadas, que todo o palco parecia alongar-se numa infinita brancura. Na platéia apareciam faces de homens, mulheres ajustavam-se, e a claque ao fundo, diante dos mesmos copos vazios, berrava:

– Verônica! Verônica!

– Faça a iniciação, meu amigo, como diz o Sabiani, faça.

Sim tutelar, oh Lua
Margem da Alegria
Onde abordam os barcos das almas puras…

Houve um trilo de flauta como um trinado de pássaro, o bumbo reboou, caiu num choque de pratos, e de um pulo surgiu no meio do palco a princesa Verônica. Era magra, desossada, com a face afiada das divindades egípcias. Sorrindo, mostrava os dentes irregulares, e tinha a cor das múmias, como se a sua pele fosse queimada por lentos óleos bárbaros. Vestia meias de seda cor de carne; os pés, enluvados de branco, de tão finos e minúsculos recordavam a graça dos lírios a desabrochar, e o seu corpo de serpente ondulava dentro de um estojo de lantejoulas de prata.

– É uma crioula!

– Da Jamaica, filha de um velho rei índio…

Bizarre déité, brune comme les nuits,
Au parfum mélangé de musc et de havane
Oeuvre de qualque obi…

O barão citava Beaudelaire, o barão amava!

Verônica bateu as pálpebras, abriu os olhos luxuriosos, e numa reviravolta, adejou. A multidão inteira ofegava, com a alma presa àquela visão de sílfide perversa. Não era o bailado clássico das dançarinas do Scala e da Ópera, com violências de artelhos e sorrisos pregados nos lábios, não era o quebro idiota das danças húngaras ou a coréia álacre dos bailes ingleses – era uma dança inédita. Havia no seu meneio a graça das aves, no sorriso a volúpia de um outro mundo, no langor com que abria os braços, o delíquio da paixão. Os grossos diamantes que lhe escorriam dos lóbulos pareciam aquecer-se na sua pele ardente: as flores, presas à carapinha de negra, aureolavam-na de desmaios de púrpura. Ela flutuava, pássaro, serpente lendária, adejando num esplendor de prata.

– Oh! O barão deu agora para o exotismo. Essa Verônica é uma preta como outra qualquer, que se intitula princesa.

Calei-me porém. O barão falava, sussurrava as frases da sua admiração.

– Como ela dança! A dança é tudo, é o desejo, a súplica, a raiva, a loucura… Ela dança como uma sacerdotisa, como uma estrela perdida nas nuvens. Tem desde o salto poderoso das feras até o vôo medroso das pombas. Há nos seus gestos a orgia sanguinária de uma leoa e a maravilha constelada de uma ave do paraíso. Ao vê-la recorda a gente Salomé diante de Herodes, dançando a dança dos sete véus para obter a cabeça de São João; diante deste ondear de vida que no ar se desfaz em sensualidades, sonha-se o tetrarca de Wilde, ébrio de amor: “Salomé! Salomé! Os teus pés, a dançar, são como as rosas brancas que dançam sobre as árvores!”

Verônica terminara o bailado, toda ela rodopiante, desaparecida do halo argênteo do saiote, e assim girando vertiginosamente, com os seus dois pés finos e estranhos, parecia uma flor de prata, uma estranha parasita caída dos espaços naquele ambiente de névoas. As palmas rebentaram num chuveiro. Ela parou, abriu os braços, deixou escorregar vagarosamente os pés, tão devagar que parecia ir-se afundando, até que caiu no grande écart, a mão na testa, sorrindo. O público, porém, enervado, queria mais, batia com as mãos, com os pés; as mulheres nos camarotes erguiam-se e Verônica tornou a aparecer, fazendo gestos de agradecimento que eram como súplicas de amor.

– Dances américaines! – disse.

E imediatamente, no miúdo compasso da orquestra, o seu corpo, da cinta para baixo, começou a desarticular-se, a mexer. Os pés estavam no chão, rápidos, havia sapateados e corridas; as ancas magras cresciam, aumentavam rebolando; o ventre ondulava; aquele corpo que fugia e avançava com meneios negaceados, confundiu-se na harmonia dos compassos em adejos. A mulher desaparecia numa exasperante combinação de sons gesticulados, de vibrações de cantárida, de crises danadas de espasmo. Era perturbadora, infernal, incomparável!

Quando ela acabou, o barão ergueu-se rápido.

– Vamos vê-la…

O conde Sabiani, que olhava para baixo, acompanhando o movimento febril da multidão, fez um vago gesto, ficou cheirando o seu cravo.

Nós descemos a escada pequena que dá no botequim. Já a orquestra tocava um fandango e a bela Carmem, uma antiqüíssima espanhola de meias rubras, soltava olés roufenhos. O público desinteressava-se. O barão parou um instante como à espera de um homem gordo, que caminhava amparado à bengala. O homem vinha conversando com dois rapazes de fraque e chapéu de palha, que recuavam estendendo as mãos como a abotoar invisíveis inimigos e caíam para a frente, mimando cabeçadas cruéis. O homem gordo acabou por acostar-se no balaústre e disse sem rir:

– C’est drôle ça!

Um dos moços, com o colarinho inverossimilmente alto, afastou o outro na ânsia de acumular as atenç5es e segurando a gola do gorducho, murmurou:

– Então eu segurei o cabra…

O barão seguiu.

– São os elegantes valentes! Não acabam mais com as histórias. Vamos ver a Verônica… Sabes que ela se perfuma de sândalo?

Seguimos para o fundo do jardim onde só havia, na iluminação de névoa, entre as árvores, duas mulheres de grande manto a conversar: subimos a entrada de sarrafos da caixa. O régisseur, um italiano louro de face inteligente, cumprimentou-nos com um sorriso camarada e fomos andando, entre criados de blusa azul e varredores. A um canto, um duo americano preparava-se para entrar em cena. As portas dos camarins abertas, as chanteuses esperavam todas pintadas, as mãos nervosas. O barão bateu à porta do camarim da princesa:

– Go in…

E nós entramos. O pequeno espaço recendia todo a um inebriante perfume de sândalo, e havia por toda a parte uma orgia floral! – rosas vermelhas, rosas brancas, catléias crispi estendendo os tentáculos de neve, lírios vermelhos com os pistilos amarelos, angélicas, anêmonas, cravos, tuberosas – e enramando a olência desse deboche de flores, o fino desenho, a renda anêmica das avencas verdes. Na redolente atmosfera, afundada no divã, envolta numa toalha de felpo, surgia a figurinha de bronze da princesa indiana, e a princesa chorava. Grossas lágrimas corriam dos seus olhos de deusa Isis e adejando as mãos ela soluçava.

– Oh! my dear, sweet heart, ce chien... ele não veio.

– Quem?

– O de ontem, aquele de ontem. E não pagam. Dizem que é pela minha cor. Há muitos aqui. It is very, Belfort? Mon petit, c’est vrai?

Abriu os braços como uma boneca, emborcou num choro convulso:

– Malhereuse. I’m malhereuse.

Ela falava todas as línguas da Europa numa ingênua e horrível confusão. O barão limpou o monóculo, pegou-lhe no braço, paternal e filosófico.

– Estranha criatura, continuas a te perfumar de sândalo? Ainda és o sonho enervante do Oriente, o fluido das florestas bizarras?… Deixa lá… Acalma-te. Não te compreendem, pequeno ídolo amado. É como se esses homens pudessem diferenciar o sabor de um licor quando bebido num maravilhoso vaso trabalhado pelos bárbaros, do mesmo licor tragado em qualquer copo. Eles são homens. E tu – tu és a princesa dos sândalos.

E ficamos ali vendo a criaturinha a chorar, enquanto lá fora nos ruídos da música, no bruhaha da multidão, subia mais forte a onda da luxúria.

João do Rio (João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto) – 1881/1921.

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