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FESTA DE CABEÇAS CORTADAS

Graças ao Dumas pai, eu e o José Lino Grünewald somos íntimos da Revolução Francesa. Falo da primeira, da autêntica e não da atual. A atual tem um defeito indesculpável: — falta-lhe sangue e, repito, o sangue não jorra como a água dos tritões de chafariz. E, como não há marias antonietas, nem cabeças cortadas, o mundo já boceja. Sim, é o tédio antes do Terror (e talvez não haja nem o Terror).

Eu e o José Lino Grünewald, com base em nossa experiência de Dumas pai, diríamos que a atual revolução francesa não tem nada de Revolução Francesa. Ainda ontem, Raul Brandão, o pintor, bateu o telefone para mim: — “Como a greve é chata!”. Dava uma opinião pictórica. E, realmente, só tem valor plástico a greve metralhada, com operários emborcados na sarjeta. Mas nada mais insípido do que a greve consentida, abençoada, unânime. Imaginem, imaginem:

— a própria polícia é grevista também.

Eu e o José Lino poderíamos sugerir ao público: — “Não leiam os jornais. Leiam o velho Dumas”. Falta ao noticiário atual o frêmito, a tensão, a crueldade das Memórias de um médico. Portanto, entendo o comentário restritivo do Raul Brandão: — “Como é chata a greve!”.

Todavia, alguma coisa salva a “revolução cultural” da monotonia irremediável. É um certo suspense, é um certo mistério. A França parou. Primeiro, os estudantes e, depois, o resto. Nunca houve tamanha greve. Até os papa-defuntos, até os coveiros, cruzaram os braços. Ninguém morre, por falta de quem o enterre.

Mas eis a pergunta que o mundo faz, sem lhe achar a resposta: — “Por quê?”.

Os artigos sobre as greves não explicam nada e por uma razão óbvia: — o inexplicável é inexplicável. A princípio, imaginei que os grevistas quisessem o poder. São milhões e milhões. Portanto, os grevistas têm o que eu chamaria de onipotência numérica. Não há o que objetar, o que discutir, o que resistir. São milhões e eu imaginei que a história lhes daria o poder imediato.

Engano. Os dez ou 12 milhões de franceses não querem o poder. Vocês entendem? O poder está, diante deles, como um fruto próximo, fácil, indefeso; basta o gesto de colhê-lo. Mas ninguém se dispõe a tal gesto. E nem há, ao menos, o vago, surdo, informulado desejo do poder. A presente “revolução cultural” corre o risco de ser um movimento idiota. Dirá alguém que as greves assumem uma dimensão de catástrofe. Mas insisto: — pode haver a catástrofe idiota.

Sem querer, deixei escapar a palavra exata: — idiota. Há quinze ou vinte dias atrás, escrevi sobre o grande tema de nossa época. Não sei se vocês se lembram. Falei da ascensão do idiota. No passado, eram os “melhores” que faziam os usos, os costumes, os valores, as ideias, os sentimentos etc. etc. Perguntará alguém: — “E que fazia o idiota?”. Resposta: — fazia filhos.

Mas vejam: — o idiota como tal se comportava. Na rua, passava rente às paredes, gaguejante de humildade. Sabia-se idiota e estava ciente da própria inépcia. Só os “melhores” sentiam, pensavam, e só eles tinham as grandes esposas, as grandes amantes, as grandes residências. E, quando um deles morria, logo os idiotas tratavam de erguer um monumento ao gênio.

E, de repente, tudo mudou. Após milênios de passividade abjeta, o idiota descobriu a própria superioridade numérica. Começaram a aparecer as multidões jamais concebidas. Eram eles, os idiotas. Os “melhores” se juntavam em pequenas minorias acuadas, batidas, apavoradas. O imbecil, que falava baixinho, ergueu a voz; ele, que apenas fazia filhos, começou a pensar. Pela primeira vez, o idiota é artista plástico, é sociólogo, é cientista, é romancista, é prêmio Nobel, é dramaturgo, é professor, é sacerdote. Aprende, sabe, ensina.

No presente mundo ninguém faz nada, ninguém é nada, sem o apoio dos cretinos de ambos os sexos. Sem esse apoio, o sujeito não existe, simplesmente não existe. E, para sobreviver, o intelectual, o santo ou herói precisa imitar o idiota. O próprio líder deixou de ser uma seleção. Hoje, os cretinos preferem a liderança de outro cretino.

Escrevi tudo isso há uns quinze dias. Ou por outra: — há um mês, mês e meio. E, súbito, as greves da França parecem dar razão aos meus escritos. Eu queria, aqui, insinuar a hipótese de que a “revolução cultural” seja obra de idiotas. São milhões de sujeitos implicados no movimento. Mas não há um único e escasso líder; não se ouve um nome. Aí está um dado patético. Não há nada mais impessoal do que o idiota e nada mais idiota do que a unanimidade. E os milhões exprimem a “onipotência numérica” de que falei mais acima.

De Gaulle tem, nisso tudo, a solidão do herói. Sua liderança foi um equívoco que teria de ser desfeito. É o herói puro e, ainda mais, com esporas e penacho. Diria também que não há francês mais radical. Foi francês no momento em que ninguém era francês. Mas tem o defeito realmente indesculpável de não ser idiota. Terá que cair, mais cedo ou mais tarde.

Mas devo fazer uma ressalva. E, de fato, o idiota francês não será nunca trivial. Tem, a seu favor, a língua. A lavadeira parisiense é uma estilista; fala como uma heroína de Racine. E o chofer de táxi descompõe os turistas com o rigor, a melodia, a plasticidade da prosa francesa. Em tal idioma, a pior vulgaridade está a um milímetro do sublime. Nos telegramas, não se cita um grande nome da França. Minto. Vi uma fotografia de Sartre ao lado de grevistas.

Estava, ali, fingindo-se de idiota para sobreviver.

Nelson Rodrigues – 24/05/1968

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