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A TORTA IRLANDESA

Acordei cedo com o telefonema de uma grande amiga. Aflita, queria o contato de um médico amigo para cuidar de sua mãe, em seus últimos dias e assinar o atestado de óbito.

Pragmática tentava antecipar e vencer rapidamente as barreiras insanas da burocracia quando o óbito viesse a acontecer.

Segundo ela, a mãe há dias não se alimentava e estava muito fragilizada, vitimada pelo Alzhimer.

A morte poderia acontecer a qualquer hora e ela não queria ser surpreendida pelo excesso de tramites administrativos, cheio de carimbos e selos, a velha herança colonial lusitana, que persiste em nos atazanar até no momento de fechar o caixão.

Fiz melhor, telefonei para Alberto Louzada, conhecido geriatra, que aos trancos e barrancos e infinita paciência tenta me cuidar. O levei na casa da filha da quase falecida.

A visita médica combinava ares de um pressuroso padre para ministrar a extrema unção e de um experimentado guarda-livros para fechar a contabilidade daquela alma pronta para subir ao reino dos céus e desfrutar de suas tão propaladas delícias.

O portão abriu e Flora surgiu com seus 1,73m, gestos largos e cabelos ruivos, herança irlandesa dos avós, que ela soube cultivar muito bem, fazendo brilhar os olhos ariscos do médico maduro, mas bastante perspicaz.

O Doutor Alberto Louzada, passou pelo quarto da doente, não se demorou, mas constatou a gravidade do quadro, selando em definitivo o destino da octagenária. A essa altura dos acontecimentos para o atestado de óbito faltava à assinatura.

O doutor não recusou o generoso pedaço da torta de maçã irlandesa e depois de lamber os beiços, deixou o número do telefone com Flora, prometendo voltar na próxima segunda-feira ou para algum atendimento de urgência, sacramentando tão doloroso acontecimento.

Meses depois, sempre escapulindo das recomendações, encontrei o velho amigo. Percebi o aprumo do terno bem cortado e os sapatos brilhando por conta de Gadabá, o longevo engraxate do centro da cidade.

Era outro homem, renascido e ungido pelo amor da “irlandesa”. Não resisti e perguntei: – e a velhinha, pelo jeito não escapou do atestado de óbito?

– Que nada, Dona Gwineth está vivinha da silva, nada fala, nem resmunga. Encolhidinha na cama, de boca aberta olhando para as esquinas da parede e o teto. Busca Jesus.

– Passo duas vezes por semana, olho, meço a temperatura e depois vou pra copa comer um pedaço da torta e trufas de uísque inventadas por Flora.

– Você me apresentou ao paraíso!

Lopes da Guia

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