Por incrível que pareça às crianças e jovens de hoje, um dia brincamos nas ruas. Aliás seria impreciso dizer que apenas nos divertíamos nelas sem considerar as pracinhas de antigamente também. Não era toda a rua que nos permitia brincadeiras, é verdade. Algumas eram artérias hipertensas que bombeavam nervosamente os carros em volume e velocidade cada vez maiores. Mas, em muitas vias laterais, umas mais outras menos recolhidas, ainda era possível que se tornassem estádios de futebol, arenas do jogo de taco, palco das bolas de gude, pistas das bicicletas, esconderijos dos piques, ou um lugar para os jovens um pouco mais velhos se reunirem para uma boa conversa.
Em tempos de copa do mundo, havia uma euforia gostosa que contagiava os moradores e os abria a generosidade aos nossos pedidos nas calçadas para que nos dessem uns trocados para que pudéssemos comprar as tintas e pincéis e, com eles, decorar a rua. Isso sem falar das bandeirinhas e, em algumas mais intensamente organizadas, telões, som e tudo mais. Gostosas também eram as festas juninas nas ruas. Elas se transformavam num grande arraial, com barraquinhas de todos os tamanhos, com todos os cheiros, sabores, diversões e prendas.
As pracinhas também eram lugares diferenciados. As melhores eram sem dúvida as mais amplas e que contavam com uma arborização generosa, com sua mescla de sol, sombras e bancos na medida certa. Gramados que se revezavam com algumas partes calçadas para os esportes e a areia, nossa amiga íntima que tanto nos amortecia dos pulos dos balanços, escorregas, e outros brinquedos nos quais nos pendurávamos e ficávamos para lá e para cá.
Nelas, havia uma mística superior à das ruas. Afinal, era lá que estavam os pipoqueiros, vendedores de algodão doce ou doces de diferentes naturezas. Havia as carrocinhas de sorvete, de balas e refrescos (sim, aquelas uvinhas e laranjinhas que renderiam atualmente centenas de vídeos de alerta de especialistas em nutrição) que adorávamos, sobretudo estupidamente gelados como vinham.
As ruas e praças já foram lugares onde as famílias frequentavam sem tanto medo. Eram parte quase obrigatória da nossa infância e da nossa juventude, um direito que era levado a sério pela comunidade. Infelizmente, os tempos mudaram. Perdemos as ruas. Quase todas elas se tornaram lugares hostis, sem o consolo das sombras, quentes e com profundas cicatrizes descuidadas no seu concreto ou asfalto. Lugares de desconfiança e perigo só de passar, ladeadas de moradias de muros altos, grades, cercas e outras formas de proteção aprisionada.
Um dia, por exemplo, passei por uma das ruas da minha infância, cujo prédio tinha na entrada um espelho d’água cheio de carpas. Era um dos meus passeios favoritos visita-las livremente com meu avô. Hoje, apenas grades e a secura indiferente, de uma beleza inexistente.
Os tempos mudaram. As praças que ainda restam são um triste e precário reflexo, mais a serviços de vícios e perigos. As ruas também. Uma pena. Tomara que um dia possam olhar com inspiração para o seu próprio passado.
Paulo Cotias é psicanalista e escritor. Visite o site www.psicotias.com e acompanhe os conteúdos do Canal Psicotias no YouTube, Facebook, Instagram e X (Twitter).