Paulo Mendes Campos – 1922/1991.
DESCANSO DE FUTEBOL
Eu devia ou pelo menos merecia estar aposentado. Mas a ideia sombria da invalidez, e não do ócio com vivacidade, orientou os criadores do instituto de aposentadoria.
Deu-se que um dia, há uns três anos, vislumbrei de súbito que uma aposentadoria especial estava ao alcance de minha mão. Foi uma coisa drástica mas lúcida: exonerei-me do futebol. Descobri num relance que eu somava trinta e cinco anos de futebol e podia anos ainda não vi o futebol, é porque não tenho olhos para vê-lo. Sim, já vi o futebol. Já vi, vivi, sofri e morri o futebol. Valeu muitíssimo a pena e o prazer, mas não tinha mais sentido me perder no tráfego de sábado e domingo a fim de presenciar do alto da arquibancada um espetáculo lá visto e revisto.
Velhos irmãos de opa, sobretudo os de opa alvinegra, ficam irritados com esse meu raciocínio, que consideram um desvio do entendimento, e com essa retirada, na qual farejam uma apostasia. Pois vou aguentando as broncas todas, folheando ainda as páginas e mas decidido a só comparecer ao estádio em caso de compulsão emotiva.
Já vi o futebol. Hoje prefiro e só me cabe rever as fitas da lembrança, onde se gravam os grandes lances do meu aturado exercício de espectador.
Não me cansei do futebol, retirei-me dele, insisto, para preservar meu patrimônio de memórias, sem o desgaste um milagre maior. Já testemunhei os milagres todos que podiam acontecer em campo. Vi nessa longa temporada lances magistrais que possivelmente não se repetirão nos dias de minha vida. Conheço bem a experiência calorosa de sentir-me uno e soldado à alma da multidão, como conheço o sentimento dramático e animador de estar em confronto com a maioria ululante.
Sei que as possibilidades de uma partida qualquer são infinitas; mas não quero disputar mais; não quero mais exercer o pileque dionisíaco da vitória e nem a ressaca autopunitiva da derrota. Na idade magoada em que me encontro, torcer como se deve torcer, com o desvario da alma toda, seria um despudor! Um instinto me aponta o caminho da contemplação e outro instinto me insinua que, em matéria de contemplação futebolística, minhas chances de novidade e plenitude são mínimas.
O futebol já me viu. O futebol jogou-me como quis. O que colhi no campo dá perfeitamente para eu viver mais dez ou vinte anos. No meu celeiro de craques há vividas memórias de Leônidas, Zezé Procópio, Romeu, Zizinho, Didi, Nilton Santos, Pelé, Sastre, Pu por ter demonstrado que a mágica pode ganhar da lógica. Vi maviosos conjuntos, sinfonicamente arranjados, e vi o jam-session das improvisações talentosas. Vi craques nascentes como quem acha um novo amor ou dinheiro perdido. Vivi até onde pude minhas tardes olímpicas e minhas noites de dança ritual ao pé do fogo. Retiro-me com a sensação saciada de que cumpri o dever para com a tribo e não driblei o meu destino.
Meu destino era amar o futebol. Amei-o. Desde criancinha, quando espiava da lonjura da janela a bola que dançava no capim do clube aldeão. Até hoje, não é o perfume de aubépine ou de qualquer outra planta altiva que me proustianiza; é o aroma rasteiro da espacia.
SEIS SENTIDOS
É boa para os olhos. Nas outras cidades grandes, onde não devia haver nada, há um monturo de edificações; em Brasília, onde não deve haver nada, não há nada. Descansa os olhos. Possui as riquezas elementares que foram mutiladas nos grandes centros: céu cor de céu, vegetal verde, água tranquilizante. Até os cegos podem ver Brasília pela vibração sutil e confortante dos espaços abertos.
Brasília é boa para os ouvidos. Reclamar do barulho de certas superquadras é um luxo. Na verdade os decibéis do trânsito e das construções, à falta de eco, perdem depressa o timbre agressivo nos descampados do planalto. Por isso, quando um carro sem tubo de escapamento dá partida debaixo de nossa janela, sentimos um repelão na trama nervosa: depois de uma noite serena nossos ouvidos já estão passados a limpo e percebemos o quanto o silêncio nos era precioso. Mas é natural que o brasiliense reclame do ruído, onde este só aparece para dizer que existe; os habitantes do Rio, São Paulo e Belo Horizonte, se quiserem manter a mesma coerência, deverão reclamar do silêncio, caso este der o ar de sua graça.
Brasília faz bem ao nosso nariz. Não agride o olfato de ninguém. Um poeta fala da necessidade urbana de um nariz solene e paciente, apto para servir num mundo prosaico. Em Brasília nosso nariz não precisa assumir esse ar conspícuo. E há mesmo certo bucolismo na expressão mais espontânea dos narizes federais.
Brasília não nos agride pelo tato. A transpiração não escorre pelo pescoço. A lã não irrita a epiderme alérgica. E, se houvesse uma estatística para encontrões de rua, a capital teria decerto o mais baixo índice de todas as outras capitais do mundo.
Brasília por fim é boa de paladar. As cidades comem melhor na medida em que sobra tempo à imaginação culinária da dona de casa. E comem pior na medida em que o relógio nos come por uma perna. Comi razoavelmente bem nos restaurantes mais mesureiros e não tenho defeito para botar na costelinha, no torresmo e no tutu do posto de gasolina de seu Louzada, na roça da Asa Norte.
No princípio, quando Brasília era a Cidade-Livre e fundações, não havia nada, a não ser calor humano. Depois, quando a base urbana ficou pronta, saiu logo do forno uma chapa que vem sendo repetida nestes treze anos: “Brasília não tem calor humano”.
Que acho? Antes de tudo, que nessa questão de calor humano não há termômetro universal. De minha parte seria uma injustiça e até uma ingratidão qualquer queixa. Tenho numerosos amigos em Brasília e meu constrangimento é nunca dispor de tempo para abraçar a todos. Acredito além disso que um jornalista, neste cálido Brasil, pode sentir falta de muitas coisas, menos calor humano. Em nosso território, terrestre e aquático, as letras, por mais humildes que sejam, sempre encontram um cantinho quente, um aperto de mão, uma cachacinha amiga.
Mas só há um modo de saber: perguntando. Foi o que fiz. Saí colocando para todo mundo o meu enigma. Você sente falta de calor humano em Brasília? Passei a ser a esfinge do calor humano, com o risco de passar (ou de ser reconhecido) por maluco. Perguntei a jornalistas, empregados de hotel, estudantes, comerciantes, um corretor, donas de casa, motoristas e funcionários: Sente falta de calor humano?
Como? Que trem é este? – Aqui em Brasília… A aturada pesquisa deu em nada. Uns disseram que sim, outros que não. E houve ainda uma pequena fração, aritmeticamente desprezível, que respondeu: Mais ou menos.
Pois creio que essa fração desprezível está com a verdade: esse negócio de calor humano (em Madri, Paris, Londres, São Petersburgo e o mundo) é mais ou menos. As ondas de frio e calor humanos são variáveis e dependentes de mil fatores, muitas vezes contrastantes. O termômetro humano, a qualquer local, registra um enxame de temperaturas diferentes. Tal é o nosso destino de aparelhos ultrassensíveis, capazes de registrar simultaneamente o calor da criança que nos sorri e o gelo da criança que faz uma careta para a nossa solidão. Calor humano de fato (não resisto à vulgaridade) a gente encontra nos trens elétricos da Central. Não há nada a fazer contra a imensa escala térmica das reações humanas.