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Crônica / Conto

A MISSA DE SANGUE

Em vida de sua primeira mulher, foi a pérola dos maridos e, sobretudo, um
monstro de fidelidade. Saía do trabalho, digamos, às seis horas. Às vezes, parava um segundo, tomava um cafezinho em pé e era só. Pendurava-se no primeiro bonde, com a ideia fixa de chegar em casa. Estavam casados há seis anos. Pois se gostavam como na lua de mel; viviam num agarramento de meter inveja nos casais infelizes. O comentário geral era o seguinte:
— Parecem dois namorados!
De fato, pareciam. Namorados, noivos ou casadinhos de fresco. Ainda por cima, ciumentíssimos um do outro. Qualquer coisinha, Penteado rosnava:
— Modos!
Para evitar brigas não brincavam no carnaval. Se iam a uma festa, Clélia devia entrar mancando e espalhar, aos quatro ventos, com ar de mártir:
— Estou com o pé machucado.
Engraçadíssimo se um deles bocejava na presença do outro. Vinha o mundo abaixo. Ela, então, não perdoava, dava muxoxo, batia com o pé, fazia má-criação. Incluía o bocejo entre os sintomas clássicos, inconfundíveis, dos finais de amor. Estabelecia o seguinte raciocínio estapafúrdio: “Se ele tem sono ao meu lado, se abre a boca, é porque não gosta mais de mim.” Ou então, estava gostando menos. Penteado tinha que jurar por todos os santos que sua paixão era cada vez mais feroz, etc., etc. A briga acabava em beijo. Ele acompanhava com a ponta da língua o
contorno de sua orelha pequena e sensível. Ela, morena, nortista, com propensão para engordar, terminava num dengue irresistível:
— Tu gosta muito dessa gatinha, gosta?

A Catástrofe

Um dia, Penteado entra em casa e encontra Clélia com febre. Pediu o
termômetro emprestado no vizinho. Findos os três minutos, ergue o termômetro e verifica a temperatura: quarenta graus! Quase caiu para trás. No seu pânico, quis telefonar para a Assistência. Chamaram-no à razão:— Assistência pra febre? Sossega, Penteado, toma jeito!
Não faltou quem o confortasse, dizendo:
— Algum resfriado besta!
Durante dez dias fez-se o diabo. Clélia tomou tudo quanto foi remédio; injeção, soro, transfusão de sangue e até tenda de oxigênio. Penteado, que ganhava 18 mil cruzeiros mensais, gastou como um Rotschild. Quando soube do preço da tenda de oxigênio, estava no auge de sua dor, incrustou, entre os seus gemidos, um protesto:
— Que exploração!
E continuou a chorar. No drama de Clélia, havia uma coisa que o punha fora de si: o delírio. Arremessava-se, então, para fora do quarto; esbarrava nos móveis; trancava-se na privada e soluçava como uma criança. Na verdade, o delírio da doente era algo de aterrador.
Clélia dizia tudo quanto era absurdo, inclusive coisas de escandalosa
inconveniência, até nomes feios. Precisavam quase amordaçá-la. Um dia, um médico de emergência, chamado às carreiras, esteve no quarto, com a doente, examinando-a. Apareceu na porta e convocou Penteado:
— O senhor quer vir aqui um instantinho, Seu Euzébio? Penteado sobressaltou-se:
— Euzébio?
Instintivamente, olhou em torno, à procura de um possível Euzébio. No
momento, porém, só ele estava na sala; tratava-se, portanto, de sua pessoa. Veio, atônito, ao encontro do médico. Este insistiu:
— Olha, aqui, Seu Euzébio…
Retificou:
— Alberto. Alberto Penteado.
Espanto do médico:
— Como? Não é Euzébio?… Mas ela só fala em Euzébio… Quer dizer que…

O Delírio

Penteado invadiu o quarto, assombrado, enquanto o médico, já desconfiado de alguma inconveniência, estava, ao lado, mudo. Os dois, sem uma palavra, foram testemunhas do delírio que virava, pelo avesso, a pobre esposa. Toda a piedade anterior de Penteado se fundia agora numa curiosidade insaciável. O próprio médico, esquecido da função profissional, estava atento e sôfrego, como um ouvinte
de novela. E Clélia só falava num nome e numa pessoa: Euzébio, só Euzébio, para sempre Euzébio. Dir-se-ia que não existiam no mundo outras pessoas, outros nomes. Não houve uma tênue, remota referência ao marido. De repente ergueu-se; veio descalça, cambaleando, e coincidiu que caminhou na direção de Penteado. Ele, estupefato, não fez um gesto. Sentiu-se abraçado, beijado por uma boca quente e
esfomeada; Clélia gemia:
— Euzébio… Euzébio…
Em oito dias de doença, ficara irreconhecível. Fora sempre cheia de corpo: fazia, de vez em quando, regime para emagrecer. Agora, porém, estava que era um esqueleto, um rosto de caveira. Caindo em si. Penteado desprendeu-se, brutalmente. A doente desequilibrou-se e cairia se o médico não a amparasse.

O Novo Drama

Penteado saiu, batendo com a porta do quarto. Naquele momento, em que se capacitava, subitamente, de sua condição de marido enganado, houve uma coisa que doeu, nele, como uma nevralgia: as despesas que vinha fazendo. Com a moléstia da mulher, contraíra dívidas, recorrera a amigos, parentes, agiotas e vizinhos. E, sobretudo, teve uma raiva cega e obtusa da tenda de oxigênio, que custava um dinheirão. Andando de um lado para outro, fez uma reflexão de uma graça triste: muito cara a agonia da esposa! Pouco a pouco um furor estéril apoderou-se do pobre-diabo. Precisava fazer alguma coisa que libertasse a raiva contida. Viu uma cadeira na frente. Ótimo. Deu um chute na cadeira. E a dor física, a dor das canelas esfoladas, serviu-lhe de alívio. Repetia:
— Cínica! Cínica!
O médico, que surgiu magicamente diante dele, pôs a mão no seu ombro:
— Tenha fé em Deus!
Penteado odiou esse homem, testemunha de sua vergonha conjugal. Berrou:
— Ora, vai-te para o diabo que te carregue!
Ficou só. Disse a si mesmo que não pagaria mais uma injeção, um comprimido, para “essa cara”. Não conseguia compreender, porém, que a mulher o tivesse traído sem inspirar uma suspeita, nunca, sem deixar uma sugestão de infidelidade. Jamais um pecado se consumara com tão perfeito sigilo! Continuou a agonia. Receitaram transfusão de sangue, mais câmara de oxigênio, etc. Penteado foi brutal:
— Não sou o Banco do Brasil!

Flores

Já mudara por completo de atitude, com grande escândalo dos vizinhos e dos parentes. Todo mundo sabia, é claro, que existia na vida de Clélia um Euzébio. Seus delírios inspiravam uma curiosidade tremenda: as comadres invadiam o quarto da moribunda, na expectativa de outras revelações. Mas soubesse o marido ou não, todos achavam que, enfim… Quando a moça morreu, uma tia da morta veio buscá-lo na sala; baixou a voz:
— A um morto se perdoa.
Ele entrou no quarto. Clélia não morrera ainda. Na última golfada, de um
líquido escuro, veio o nome de Euzébio. Vizinhas choravam; e Penteado, sem nenhuma simulação, voltou para a sala, lentamente. Duas ou três senhoras da rua tomaram conta do ambiente; um vizinho partiu, de táxi, para tratar do enterro. No meio das crises iniciais, surgiu um crioulinho, funcionário da farmácia, com uma conta nababesca. Penteado olhou o papel timbrado com absoluto desprezo.
Devolveu-o; numa ostentação desagradabilíssima, virou os dois bolsos pelo avesso:

— Não tenho níquel!
Justiça se lhe faça: embora sem derramar uma lágrima, não se afastou um
segundo do corpo, a não ser para apanhar, no guarda-roupa, uma gravata preta. Às sete horas da noite, teve uma lembrança, que causou penosíssima impressão: encomendou uma coroa, mandando assinar “Euzébio”. E ficou controlando a chegada das flores. A coroa chegou quase de manhã e era, de fato, linda, de orquídeas brancas. O próprio Penteado escolheu um lugar bem visível. Na saída, culminou sua impiedade. Na frente de todo mundo, deu a ordem:
— Esta coroa vai em cima do caixão.

A Missa

Esta maldade sóbria e raciocinada arrepiava. Disseram horrores de Penteado. Parentes da morta o ameaçaram:
— Deus castiga! Deus castiga!
E ele:
— Paciência.
A tinturaria tingira, de preto, às pressas, dois ternos. Pode trajar o luto fechado: e foi, em pessoa, tratar da missa que, como de praxe, teve lugar sete dias depois, com música e canto. De preto, assistiu a tudo, incomovível: só tinha mesmo de viúvo o terno da tinturaria. Terminada a cerimônia, recebeu, na sacristia, as condolências. Uma das senhoras, ao abraçá-lo, percebeu o volume do revólver.
Ficou restando um sujeitinho, magrinho, pequenininho, de barba crescida, que veio cumprimentá-lo; apertaram-se as mãos e o sujeito ciciou, ao sair:
— Euzébio de Almeida, seu criado.
— Ah, perfeitamente! Pois não!
Vieram os dois caminhando, lado a lado, por entre as imagens de santos nas paredes. Quando chegaram na rua, Euzébio despediu-se, pela segunda vez:
— Passar bem, passar bem.
Penteado deixou que ele virasse e, pelas costas, deu-lhe três tiros. Houve
correrias, atropelos. Euzébio morreu, ali mesmo, na calçada.

Nelson Rodrigues – 1912/1980.

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