
É verdade que a geração antes da minha sobreviveu a muitas coisas. E não falo apenas de guerras e crises, mas a julgar pelo que vi das propagandas antigas, havia cerveja recomendada para grávidas e crianças, xaropes com heroína e kits de brinquedo com substâncias radioativas, claro, para estimular a genialidade (e as mutações potencialmente cancerígenas) dos pequenos cientistas.
O armário de remédios dos meus avós era uma prova viva desse tempo. Depois que aprendi a ler não foi difícil reconhecer aqueles vidros com éter, tintura de iodo, água oxigenada, elixir paregórico, um pequeno frasco de um remédio violeta que eu não lembro o nome, além de várias outras fórmulas estranhas. Como sabia bem o que aconteceria se eu bancasse o alquimista, não os manipulava. Exceto um, o mertiolate, substância macabra que aterrorizou toda uma geração de joelhos ralados e tampos dos dedões arrancados ao chutar o chão ao invés da bola.
Talvez seja por ter vivido tudo isso que os mais velhos lá de casa tinham uma preocupação mais delicada com a carência de vitamina das crianças, isso provavelmente porque quase toda a molecada da minha idade comia mais besteiras do que “comida de verdade” (sem contar, claro, a crise e a dificuldade de tanta variedade). Mas isso é história para outro dia.
O fato é que um belo dia, quando saiu o resultado de um exame de sangue, peguei os adultos muito solenes, discutindo sobre certas carências vitamínicas e uma tal de anemia. Por mais que eu não soubesse do que se tratava o caso, imaginava que não seria nada bom. Minha preocupação? Tomar injeções ou comprimidos, duas coisas que, naquela idade, eu resistia com heroísmo.
Foi quando falaram em um tal de óleo de fígado de bacalhau. Moleza, pensei. Minha avó sempre me levava para degustar uns bons bolinhos em uma casa portuguesa tradicional do bairro, além de preparar outras variações da iguaria nos dias de tradição cristã. Se comer era uma delícia, tomar umas colheradas daquele óleo certamente seria uma experiência clínico-gastronômica reconfortante.
Quando minha mãe trouxe a tal emulsão, achei curioso que uma coisa tão gostosa viesse em um vidro tão ameaçador, com direito ao rótulo no qual um pescador carrancudo carregava um peixe enorme preso em um gancho. Mais curiosa deve ter ficado ela, ao ver uma criança tão sorridente, tão disponível, tão ansiosa por sorver aquele néctar dos deuses.
Tudo isso se desmanchou como um castelo de cartas com o primeiro gole. Eu não imaginava como seria uma cabeça de bacalhau. Agora, desejaria não ter descoberto que ele tem um fígado. Era algo difícil de esquecer aliás, pois aquilo ficava impregnado em você por dentro, na sua respiração, na alma, talvez. Claro que eu dava algumas esvaziadas na embalagem para diminuir o tempo do meu sofrimento. E valeu a pena. Por que segundo a prescrição do doutor, o remédio seguinte era um tal de biotônico. Esse sim, me dava a sensação de estar brindando em uma festa de réveillon. Não me perguntem o motivo…
Paulo Cotias é psicanalista, professor, historiador e escritor. Siga @opaulocotias nas redes sociais (YouTube, Facebook, Instagram e X) e visite o site www.psicotias.com