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Crônica / Conto

JANELA DE OPORTUNIDADES

Quase todos os dias ele ia para a modesta varanda do seu velho prédio, localizado em um igualmente antigo bairro da Zona Norte da cidade. A visão era sempre a mesma. Logo em frente, quase rente ao gradil, uma árvore agonizante que ainda rendia alguma sombra, apesar dos pesares. Como era bastante comum por ali, os fios de alta tensão e telefonia pendiam indiferentes a qualquer tipo de concepção estética.

A depender do dia e às vezes do clima, olhar para baixo permitia contemplar o vai e vem rotineiro da gente trabalhadora. A cadência das mulheres subindo com suas latas d’água ou um fardo de compras apoiadas na cabeça, em direção ao íngreme morro que dava àquela rua o seu desfecho. Ou ainda a tragédia dessa mesma gente tão menosprezada, quando a água das torrentes tornava a ambos, calçadas e o asfalto, em um rio barrento, que levava consigo muitos sonhos, agora transformados em meros detritos da enxurrada.

Porém, na maior parte das vezes, aquela varanda era o refúgio de uma brisa fresca, um resto de canto dos passarinhos e, espremido entre a largura não muito generosa que posicionava os prédios uns em frente aos outros, um rasgo que permitia, mesmo assim, contemplar o céu.

Um dia, nesse mesmo ritual diário, ele resolveu olhar um pouco mais demoradamente no imenso paredão de janelas dos apartamentos do prédio da frente. O olhar vasculhava despretensiosamente os andares, sem nenhuma elaboração ou curiosidade até que, de repente, surge em uma das janelas uma figura feminina. A moça, aparentemente tinha a mesma idade e a mesma disposição para aquele ritual de observação panorâmico de tudo e nada ao mesmo tempo.

O jogo começara. Um menear de cabeça, mas sem perder aquela imagem no canto dos olhos. Ao que parecia, os dois estavam seguindo exatamente as mesmas regras. Até que a moça entrou. E ele começou a se perguntar por que ainda estava por ali, esperando, lá no fundo, o retorno da tal moça. Com a demora, foi a vez dele de ir porta adentro, cuidar do restante dos seus afazeres.

Sem que se desse conta, começou a pensar na moça. Era de uma aparência bastante agradável, mas isso nem era o mais importante. Começou a imaginar como seria aquela residência, o que a levaria para aquela janela mesmo sem uma aconchegante varanda como a sua. Será que que, assim como ele, ela gostava de olhar aquela monotonia de pessoas e paisagens? Relaxava assim da clausura do apartamento? Até que congelou. E se ela estivesse agora pensando exatamente a mesma coisa?

Só havia um modo de saber. E, certo tempo depois, retornou para o seu posto de observação. E nada. ia e voltava, cada vez mais ansioso até que, bingo! Lá estava ela novamente debruçada na janela. Ele até tentou recomeçar a mecânica ritmada da observação, só que, por um descuido de milésimos de segundos, o seu olhar e o da moça se encontraram e colaram um no outro de modo que nenhum dos dois poderia desviar sob a alegação da coincidência.

Dizem que quando se é jovem, percebe-se com mais naturalidade certos sinais. Acho que nem sempre, mas tudo bem. E ele assim que percebeu, mesmo naquela distância que só um olhar típico dos falcões que por lá também davam às caras conseguiria, um sorriso simpático que começava a se abrir nos lábios da moça, reuniu todo o seu repertório comunicativo e conseguiu dar uma aceno e falar, apenas com o movimento dos lábios, um prolixo “oi”. E recebeu de volta a mesma saudação.

E agora? Pensou o jovem. O que deveria ser feito? Qual o próximo passo? As dúvidas foram tantas e ocuparam tanto tempo e recursos do pensamento que a moça novamente se recolhera nas sombras interiores e invisíveis do apartamento. Bobagem. Mas e se? E isso durou dias. Semanas, meses, nos quais esse mesmo ritual se repetia sempre que os dois se encontravam. O problema é que, seja na rua ou nas janelas, esse encontro sempre estava separado pela distância das calçadas.

Tentava não criar mais enredos do que já fizera. Provavelmente se tratava apenas de um protocolo de gentilezas que nascera de um acaso completo. Só isso. Então, por que isso não lhe saía da cabeça? Até que em mais um daqueles dias, a moça foi para janela acompanhada de outro rapaz. Ele congelou instantaneamente na posição de observador. Percebendo, ela fez o gesto costumeiro, só que dessa vez parecia mais protocolar e seca. O outro rapaz que estava com ela, limitou-se a fitar o nosso embasbacado jovem e rapidamente retornara o olhar para moça. E ambos deram uma breve risada e entraram.

Mesmo sem tem absolutamente nenhum compromisso com aquela moça, o jovem se sentiu profundamente abalado. Como, depois de tantos “ois” e acenos ela poderia fazer isso? Fora enganado esse tempo todo? E logo quando pensava em tomar coragem para uma abordagem mais franca! Foi quando caiu em si e percebeu o ridículo do seu próprio pensamento. Mesmo assim, uma pontinha de ciúme rancoroso ainda restara e ele simplesmente parou de olhar e acenar para a moça, fingindo ignorar a sua presença ou mesmo saindo da varanda quando a percebia na janela, ou mudando de calçada quando a via de longe.

Um tempo depois, sem mais nem menos, ele soube que a moça se mudara. Tentou manter a indiferença que passou a cultivar com esmero. Entretanto, o choque maior ainda estava para chegar. Certa vez, algumas décadas depois, ouviu sua tia-avó contar com entusiasmo que encontrara a tal vizinha em um jantar festivo de um grupo religioso que ambas, por coincidência acabaram participando juntas. Disse que ficara feliz por descobrir a coincidência dessa simpática mulher ter morado na mesma rua que nossa família e ficou intrigada com a história que ela contara, em tom de uma confissão despretensiosa, já que estava ali com seu marido e filhos:

– Daquela rua eu só guardo uma lembrança estranha, pois havia um rapaz que eu admirava quase todos os dias e, com o tempo, mesmo que nossas conversas nunca tenham passado de “ois” e acenos, tinha aquela esperança que vem misturada com a certeza de que seria o amor da minha vida. Mas, veja que bobagem, desde que mostrei ele para o meu primo que nos visitava, nunca mais o vi novamente. Vai saber, talvez tenha sido só conto de fadas que eu criei para mim mesma.

A tia queria saber se ele conhecia o tal jovem bobo, que perdeu aquela oportunidade de viver um conto de fadas: – não tia, mas deve ser realmente alguém muito arrependido.

Paulo Cotias é psicanalista e escritor. Visite o site www.psicotias.com e acompanhe os conteúdos do Canal Psicotias no YouTube, Facebook, Instagram e X (Twitter).

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