
Só gostava de homem de dois metros, forte, bonitão. Na rua, cutucava as
colegas: “Viste que alinhado? Viste?” E virava o rosto, torcia o nariz, para os rapazes que não coincidissem com suas exigências. Criticava os namorados das amigas:
“Muito baixinho!” Ou, então: “Muito barrigudo!” Ou, ainda: “Tão sem graça!” Por vezes, uma das colegas protestava:
— Explica, aqui, um negócio: o gosto é meu ou teu?
— Teu.
— Então, vê se não dá palpite, sim? Ora veja!…
Até que, um dia, chegou a sua vez. Ora, Emilinha vivia dizendo o seguinte: “O que me interessa, no duro, o que me interessa batata é a beleza física. Rapaz, pra me namorar, já sabe, tem de ser bonito, acima de tudo. Senão, eu não quero, nem me interessa!” Perguntavam: “Mas criatura! E a alma?” Ria, numa petulância, que tinha o seu it: “Pra que alma?” Parodiava o sotaque luso, para acrescentar: “Não me venhas de alma, pra cima de mim, que eu não te recebo!” Cochichava para as mais íntimas: “Fria, não sou!” Saía do banho com olheiras violentas. E, no entanto,
quando escolheu um namorado, foi um assombro geral. Houve exclamações: “Mas não é possível! Não pode ser!” A informante precisou empenhar a própria palavra de honra:
— Ninguém me disse, eu mesma vi.
— Batata?
E a pessoa:
— Quero ver minha mãe morta, se eu estou mentindo!…
Fernandinho
De fato, tinha sido vista, de braço, com o Fernandinho, num desses idílios
gritantes. Dependurada no braço do rapaz, bebendo suas palavras, parecia boba. O patético da situação residia na incoerência absoluta. Fernandinho, com efeito, era o inverso, o contrário, o oposto do seu ideal masculino. Não tinha nada, nem de Apolo, nem de Tarzan. Admitamos que fosse bonitinho. Mas era só. Altura abaixo da média; e, além disso, modos e feições que estavam longe de denunciar a masculinidade evidente e espetacular com que sonhara a pequena. Na família, o espanto e desassossego foram sintomáticos. Os irmãos perguntavam entre si: “Mas
o que foi que ela viu nessa besta?” Ninguém sabia, nem podia imaginar. O
descontentamento, porém, foi tão agudo que, um dia, o pai a convocou: “Senta aí, que eu quero conversar contigo.” Sentou-se, e o velho começou:
— Minha filha, eu sempre achei o seguinte: que, em matéria de sentimento, a própria pessoa é a maior autoridade — pausa e perguntou: — Você gosta mesmo do Fernandinho? Gosta de verdade ou…
Respondeu, doce, mas definitiva: “Gosto, papai. Gosto de verdade.” O velho ergueu-se. Pôs a mão na cabeça da menina; e suspirou: “Se você quer, paciência. Mas veja lá, minha filha, veja lá!…”
As Glândulas
E não houve nada que a demovesse. Em toda parte, faziam espanto e, não raro, insinuações de uma maldade evidente. Das duas, uma: ou ela não ligava ou, segundo a gravidade de cada caso, reagia com violência. Uma de suas amigas, mais chegadas, perguntou-lhe: “Teu namorado tem uns modos de moça, não tem?” Foi peremptória: “Olha, fulana, eu não admito esses palpites. Você é uma cretina muito grande, percebeu?” Cortaram as relações, desde então. Mas esses incidentes se repetiram. O comovente é que o próprio Fernandinho tinha consciência disso. Explicava: “Foi a educação que eu tive.” Criara-se, com efeito, ao lado de 11 irmãs.
Era o único homem da família. Emilinha, cada vez mais enamorada, respondia:
— Eu gosto de ti como tu és, assim mesmo. Os outros que se danem. Não dou a menor pelota, meu filho!…
E, assim, ficaram noivos. No dia seguinte, bate o telefone para Emilinha. Era a sogra:
— Você que dar um pulinho aqui, hoje, de tarde? — Emilinha foi. Na residência da sogra, encontrou, além desta, as 11 cunhadas. Havia, nas fisionomias, uma solenidade que espantou a pequena. Mas já a sogra tomava a palavra: “Eu sei que falam do meu filho, etc. e tal.” Emilinha, rancorosa, fez o comentário: “São uns palpiteiros muito grandes!” Suspiro da sogra: “E, ontem, eu estive no médico.”
Pausa. Atônita, Emilinha balbuciou: — Fernandinho está doente?
A velha pareceu hesitar: “Doente, propriamente não.” Venceu um escrúpulo, prosseguindo:
— O negócio é o seguinte: eu expliquei ao médico que meu filho ia se casar.
Disse, também, que Fernandinho tinha tido uma criação diferente dos outros rapazes. Pois bem. O médico garantiu que isso era uma questão de glândulas.
— Glândulas? — perguntou Emilinha.
Em redor, as 11 cunhadas, num murmúrio de coro orfeônico, repetiram:
“Glândulas.” Emilinha indagou: “Mas não estou entendendo tostão. Afinal de contas, meu noivo está ou não está doente?” A sogra deu uma resposta que, convenhamos, foi hábil:
— Está com uma doença moderna. Mas o médico me disse, me garantiu, de pedra e cal, que há tratamento — baixou a voz, repetindo: — Há tratamento!…
As Provas
Emilinha saiu de lá zonza. A sogra, que foi levá-la até o portão, repetiu em voz baixa, mas incisiva: “Há tratamento, percebeu?” E citou, mesmo, umas injeções norte-americanas que, segundo o médico, eram “ótimas”. Apertando a mão da sogra, Emilinha foi, ainda uma vez, categórica:
— Eu não entendo esse negócio de glândulas. Mas quero que a senhora saiba: gosto de seu filho como ele é, sem tirar, nem pôr.
Foi por essa época, mais ou menos, que apareceu, na casa da pequena, o tio Edgard, médico também e irmão do pai de Emilinha. Jantou com a família e, depois do café, virou-se para o chefe da casa: “Quero bater um papo contigo, lá dentro.”
Trancaram-se no gabinete. O outro pergunta:
— Vem cá, Fulano, explica um negócio: será que tu não enxergas um palmo adiante do nariz? — Como?
O irmão fez um autêntico comício: “Será que você não percebe que esse
casamento é um absurdo? Um crime? ”Insistia na palavra “crime” com especial predileção. Sem entender, o pai admirou-se: “Crime como? Crime por quê?” O outro esbravejou:
— Ora, bolas! É claro como água! Esse bestalhão é um doente! Doente, sim, senhor! Doente! Olha, ele tem, percebeste? — Tem o único defeito que um homem não pode ter! O único!…
— Será?
— Você ainda pergunta? Está na cara! Esse palhaço não pode casar nem com tua filha, nem com mulher nenhuma! Sou eu que te digo! Eu!…
O pai da Emilinha passou uns cinco minutos calado, ruminando. Ergueu-se, afinal. Mas o fato é que o travava um último escrúpulo: “Não posso fazer isso sem provas.” Era um homem sério e bom: “Não brinco com a felicidade de minha filha.
Posso desmanchar esse casamento, mas…” Suspirou, concluindo:
— Quero provas. Primeiro, as provas.
Fanatismo
O tio Edgard, que era um sujeito obstinado, partiu com a promessa: “Terás as provas.” Andou uns dois dias sumido. Apareceu, no terceiro dia, triunfante. Andara até no Distrito Policial; colhera testemunhos de não sei quantas pessoas. Por último, diante do irmão assombrado, perguntou: “É ou não é batata?” O outro admitiu: “É batata, sim.” E já prevendo a medonha desilusão da filha, gemeu: “Esse casamento é impossível.” Dez minutos depois, a filha era chamada. Sem uma palavra, com o lábio inferior tremendo, ouviu tudo. De vez em quando, o tio rosnava: “Um pilantra! Um pilantra!” O pai, porém, chegava ao fim: “Você há de compreender que esse rapaz não serve, em hipótese nenhuma. É um doente, é
um…”
Ela estava de pé:
— Eu não acredito, papai! Tudo isso é mentira! Tudo isso é calúnia!… Pai e tio se precipitaram: “Como mentira? Existe uma documentação!” Repetiu, transfigurada, na sua cólera: “Calúnia! Calúnia!” Rejeitou todas as provas, uma a uma: “Gosto dele, pronto, acabou-se!” Por fim, desafiou um e outro: “Para eu acreditar numa coisa dessa, é preciso que o Fernandinho, o próprio Fernandinho, me venha dizer. Só assim!…
Solução
O velho, que adorava aquela filha, não quis ser bruto. Disse, numa melancolia bárbara: “Vai, minha filha, vai. Amanhã conversaremos.” A pequena saiu e o tio Edgard pousou a mão no ombro do outro: “Vou ter uma conversinha com esse cara.” O pai, que o sabia cruel e implacável, fez a ressalva: “Mas nada de violência.” No dia seguinte, o tio Edgard recebia, em seu escritório, o rapaz. Entrou, como ele
próprio diria, “de sola”: “Eu soube isso, assim, assim. Ora, o senhor não pode se casar com minha sobrinha.” Lívido, Fernandinho quis reagir: “Mas é mentira!” Então, o velho perdeu a cabeça e a compostura; agarrou-o: “Seu canalha! Parto-lhe a cara! Dou-lhe um tiro!” Foi o bastante. O pobre-diabo, numa pusilanimidade convulsa, pôs-se a chorar: “Eu sou um desgraçado! Um infeliz!” Admitiu que tudo era verdade, tudinho. Exultante, o tio exigia: “Agora, tu vais comigo, dizer à tua noiva quem tu és!” Recuou, ante essa humilhação medonha. O outro, porém, o
levou, quase de rastros. Foi uma cena pavorosa. Na sala de visitas, presente toda a família, convocaram a menina. Houve um momento em que Fernandinho quis ser viril. Mas, na presença da noiva petrificada, levou novos cachações. O tio berrava: “Não banca o homem, que eu te arrebento!” E, então, soluçou: “É verdade, sim! Tudo o que dizem de mim é verdade!” O tio virou-se para a sobrinha: “Agora, responde? Ainda queres casar com esse sujeito?” Ergueu o rosto:
— Eu?…
O noivo estava atirado, para um canto, chorando, ignobilmente. Ela atravessou a sala; parou diante dele. E, súbito, apanha entre as mãos o rosto do rapaz; inclina-se. Diz, quase boca com boca:
— Eu já sabia, sempre soube, ouviste? Mas gosto de ti! Te quero assim mesmo! Nunca te deixarei, nunca!…
Virou-se para a família:
— Pai, se eu não casar com meu noivo, eu me mato, pai! Eu me mato!…
Nelson Rodrigues – 1912/1980.