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Crônica / Conto

PERSONALIDADE AUTOMOTIVA

Paulo Cotias (*)

Sim, os carros de antigamente tinham personalidade. Vejam, não estou me referindo a associação entre veículos e status. Isso é coisa dos dias de hoje. Para ser justo, antigamente também se associava determinados carros ao pedigree de certas camadas sociais, só que isso era para aqueles que, sinceramente, o povo até podia admirar, mas eram tão infrequentes que, quando um ou outro aparecia no horizonte das ruas, podia-se notar apenas um curioso e fugaz burburinho.

Nem todos antigamente (assim como atualmente) podiam dispor das condições econômicas para possuir um veículo, isso é verdade. E o sofrimento com o transporte de massas em nossa Pindorama é um triste e atemporal capítulo das nossas infâmias.

Mas, insisto, as coisas não eram como hoje. Já ouvi hoje em dia coisas mundanas como, “na minha profissão não se pode andar com qualquer veículo, pois o cliente precisa enxergar nosso status”; outras profanas como, “o fiel precisa ver a minha unção de prosperidade nesse carrão”; e outras ainda tão risíveis quanto absurdamente mesquinhas e irrelevantes como os que acham que basta ter determinado carro para que as pessoas pensem que você é “bem de vida”, ou no maldizer dos fúteis, julgando o valor existencial de A ou B pela marca, ano ou estado de conservação de determinado veículo. O resto pode-se jogar na vala comum das propagandas de pirâmides financeiras e outras artimanhas para os ingênuos.

Mas, vamos direto ao ponto. Os carros antigamente tinham personalidade. Cada marca tinha um design singular. Tão singular que podiam ser facilmente distinguidos uns dos outros. O que também os transformava em personas eram os nomes a eles dados. Não me refiro às marcas, mas literalmente aos nomes e apelidos pelos quais os carros eram devidamente batizados pela família ou pelos proprietários. Além do nome, cada veículo tinha suas “manhas”, seus resmungos, suas surpresas e, claro, suas teimosias. Também não faltam narrativas de episódios de valentia e superação! E, como duravam anos e tinham manutenção acessível, eram praticamente parte da família.

Tudo bem, não tinham as traquitanas e tecnologias dos atuais. Mas tinham lataria e algo que podemos chamar, como os filósofos alemães, de um “espírito”. Isso sem falar da beleza. O modelo do volante, amadeirado ou com aquela fina elegância, o acabamento dos painéis em sua simplicidade e simetria, o conforto que acolhia sob medida e os demais itens que mais pareciam extensões de nós mesmos, tamanha a funcionalidade. Não é por menos que são tão invejados ou olhados com um quê de cobiçoso saudosismo quando, atualmente, são vistos nas ruas. São notados, paquerados e, mesmo que estejam mais debilitados, são bem falados nas suas possibilidades. Isso é personalidade. O resto é só carro.

(*) Paulo Cotias é psicanalista e escritor. Visite o site www.psicotias.com e acompanhe os conteúdos do Canal Psicotias no YouTube, Facebook, Instagram e X (Twitter).

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