Pesquisa Datafolha, divulgada neste sábado (1), indica que 52% concordam totalmente (33%) ou em parte (19%) com a afirmação de que Brasil corre o risco de se tornar um país comunista. Em março, pesquisa Ipec, com metodologia diferente, apontou 44% concordando totalmente (31%) ou em parte (13%) que o Brasil pode se tornar comunista. Quem é minimamente bem informado sabe que o país estava mais próximo de voltar a uma ditadura de direita do que avançar para o comunismo. Esse resultado é, portanto, uma falsa percepção decorrente da influência das mentiras marteladas pelo bolsonarismo. Mais do que isso: mostra que muita gente não tem ideia do que seja comunismo.
É a força do Bolsoverso, a realidade paralela construída por Jair e aliados. Tomo a liberdade de trazer aqui parte de uma análise que eu já havia feito anteriormente porque ela segue atual. Pois é fascinante que muitas dessas pessoas não façam ideia do que seja o comunismo, repetindo chavões ensinados por lideranças da extrema direita, que usam o termo para identificar e controlar seu rebanho
A palavra “comunismo” retirada de seu sentido original, de propriedade comum dos meios de produção e da ideologia por ela sustentada, se tornou no Brasil um simples comando para o linchamento digital, independentemente de quem esteja do outro lado. O objetivo é tirar a credibilidade e destruir, muitas vezes para servir de exemplo. E, consequentemente, esse processo tornou a palavra depositária do “mal”. E um grande mal é sempre temido e vira uma ameaça.
Entres esses 52%, há quem defenda que o Brasil implemente o comunismo e os oportunistas que sabem que isso não está no horizonte, mas disseminam isso mesmo assim para causar medo entre seus seguidores. Esses dois grupos são numericamente pequenos. A esmagadora maioria é formada de pessoas que “aprenderam” que comunismo é algo ruim mesmo sem saber o que ele é
Muitos que “xingam” pessoas ou instituições de comunistas não compreendem o que isso, de fato, a palavra significa. Caso as pessoas soubessem História e estivessem atentas ao que se passa à sua volta, buscando saber as manifestações do comunismo no Brasil e no redor do mundo, poderiam, inclusive, criticá-lo de forma mais embasada. E, acredite, há críticas a serem feitas.
Ouviram de seus “mentores” que comunismo é um tipo de “governo”, formado por “vagabundos que não gostavam de trabalhar”, que ajuda a “perverter sexualmente” as “pessoas de bem” e a “destruir as famílias”, controlado por “bilionários pedófilos” e “atores de Hollywood” que tentam “vacinar os cidadãos com chips 5G” a fim de controlar seus pensamentos. O excesso de aspas não é proposital, apenas triste.
Graças à sabedoria que circula nas redes sociais, descobrimos, que a cantora Madonna, a revista Economist, as Nações Unidas, o jornal New York Times, a Rede Globo, o Facebook, o Twitter, o cantor Roger Waters, o filósofo e economista conservador Francis Fukuyama, a deputada de extrema direita Marine Le Pen, banqueiros multibilionários e a multinacional Pfizer são comunistas. Além de Leonardo DiCaprio, claro.
Bolsonaristas chegaram a chamar a Embaixada da Alemanha de comunista por ela ter postado um vídeo explicando que o nazismo é um movimento de extrema direita após Jair defender essa aberração ao visitar o Memorial do Holocausto (sim, a gente passou muita vergonha internacional nos últimos quatro anos). Pior: nossos conterrâneos disseram aos alemães que eles não entendiam muito bem o que era o nazismo. Como na vez que tentarem explicar a Roger Waters, fundador do Pink Floyd, a intenção por trás de Another Brick in the Wall, sua própria música.
O macarthismo tupiniquim inaugurado com o processo de impeachment de Dilma Rousseff fez com que pessoas fossem perseguidas por suas ideologias e até caçadas nas ruas só porque estavam vestidas de vermelho. Bolsonaro foi além e, seguindo a cartilha da extrema direita global, fomentou a ficção de que vivemos sob o risco da implementação do comunismo. Visto como delírio por quem é bem informado, inclusive pelos poucos que defendem um Brasil comunista, a “ameaça fantasma” é uma excelente forma de gerar medo e manter o público engajado.
Houve um esvaziamento do sentido original da palavra. Não raro, muitos dos que chamam alguém de comunista acham que estão usando um palavrão genérico. Chegam a ser patéticas as cenas de documentários que mostram o crescimento da extrema direita pedindo para bolsonaristas ou trumpistas explicarem o que é comunismo. Despido de seu significado, o termo também se tornou um elemento de identificação de grupo. Ou seja, uma postagem chamando a Pfizer ou Tite de comunistas imediatamente passa uma mensagem compreendida pelos demais membros do grupo, gerando conexão. De que aquilo é ruim, de que não deve ser consumido, de que deve ser combatido.
Seja 52% ou 44%, isso é muita coisa. O suficiente para vacinar com realidade paralela um naco da população, mantendo a sociedade ultrapolarizada e garantindo que fãs e seguidores do ex-presidente não percam a fé no capitão. Bem, pelo menos esse tipo de vacina ele nunca deixou faltar no país. Como já disse aqui, hoje a palavra é “comunismo”. Amanhã, quem sabe, será “democracia”
Leonardo Sakamoto