Lopes da Guia
O barulho da matraca na procissão do Senhor Morto, na sexta-feira da paixão foi dos meus grandes medos quando menino. Existiam outros tantos, como a visão apocalíptica do cipó-camarão na mão de minha mãe ou mesmo os cascudos dos garotos mais velhos, que não poupavam os quengos dos mais novos, inclusive o meu, que ficava dias ardido.
Triste sina dos meninos que como eu tinham a cabeça raspada e aquele topete emplastrado de gumex, campo livre para os cascudos, que arranhavam a cabeça de trás pra frente. Da minha mãe ainda dava pra correr e fugir pra rua, embora sob a advertência “se correr, apanha dobrado” e “se chorar apanha mais” e entrar em casa só no fim de tarde atrás das pernas bambas do meu pai. Mas dos meninos…
A matraca trazia um medo diferente. Anunciava a procissão com suas mortalhas, os cânticos lamentosos das eús, viúvas vestidas de preto, o anjo cantor e a imagem de Jesus morto, seguido pela banda da Sociedade Musical Santa Helena. Os músicos substituíam os dobrados da “furiosa” pelas notas fúnebres, que anunciavam a morte do Salvador.
Os sons, as cores escuras e as histórias de castigos e maldições contadas pelos mais velhos e freiras do “Colégio das Irmãs” deixavam meninos como eu mortos de medo. A penumbra das ruas mal iluminadas da cidade, caminhos pelos quais se arrastava a procissão, aumentava o temor. Advertia que pecados mortais não seriam tolerados e fatalmente conduziriam ao tórrido inferno. Até então o menino que eu era ainda não tinha conhecido as delícias que o capeta propunha aos homens. Não faltariam momentos mais adequados…
A Semana Santa era a oportunidade de famílias tradicionais católicas demonstrarem o seu fervor religioso e pagarem alguns dos seus tormentosos pecados. Estivéssemos na Idade Média não faltariam açoites.
Na minha memória, não lembro exatamente o ano, mas era meninote, fui deixado em casa para que a família pudesse participar do cortejo fúnebre e da missa. Certamente entenderam que a minha moleza habitual atrapalharia as contritas orações daqueles corações ansiosos pelo perdão divino. Lembro que dormi. Acordei com a casa escura. Na sala apenas o lampião Aladim, com sua saia pouco reluzente, dava o ar da graça e um pouco de luz. Lá fora o som da matraca, anunciava que a procissão estava perto, quase chegando frente à casa do meu avô. As pernas tremeram, mas nem por isso deixei de correr para a rua, na tentativa de encontrar algum conhecido para me fazer companhia, me ajudar a esconder o medo e troçar de outra criança com mais medo do que eu.
De longe avistei minha mãe entre as senhoras da Irmandade do Santíssimo Sacramento, corri pra ela e lhe atrapalhei o Pai Nosso.
O pito foi recebido com contida e disfarçada alegria.