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Crônica / Conto

MOQUECA

Graciliano Ramos – 1892/1953

– Vou contar a história da cachorra e do porco brabo, anunciou Alexandre aos amigos uma noite escanchado na rede. Já falei nisto uma vez, se não me engano, quando me referi ao veado e às duas araras. Lembram-se? Os senhores conheceram nesse dia o alcance da lazarina que meu irmão tenente me ofereceu. Ora muito bem. Essa cachorra de que vou tratar hoje era uma pobre de Cristo, feia, magra e apareceu aí no pátio, sem ninguém saber donde tinha vindo, esfomeada e cheia de peladuras. Latia que era um deus nos acuda, coçava-se nas estacas das cercas, esfregava-se nas pernas da gente e fazia nojo. Eu por mim não queria aquela infeliz em casa, mas Cesária, que tem um coração de ouro, tomou conta dela, deu-lhe comida e curou-lhe os achaques.

– Foi porque vi logo que a cachorra era diferente das outras, explicou Cesária, lá da esteira. Preta como carvão, tinha a ponta do rabo branca e uma estrela na testa. Estes sinais não falham.

– Estão ouvindo? exclamou Alexandre encantado com a sabedoria da mulher. Essa Cesária nasceu de encomenda. Que tino! Pois eu não percebi nada: a cadelinha preta, de rabo branco e estrela na testa, parecia-me igual às outras. E nem prestei atenção às primeiras habilidades dela. Depois é que assuntei: aquilo não era procedimento de cachorro ordinário. Diga-me uma coisa, mestre Gaudêncio, com franqueza: o senhor acredita em artes do diabo?

– Sem dúvida, seu Alexandre, respondeu o curandeiro. Quem não acredita?

Tenho tirado com reza muito espírito mau do couro de cristão.

– Pois, mestre Gaudêncio, continuou o dono da casa, foi no capeta que eu pensei quando a cachorra botou para fora o que sabia. Mas Cesária fez uma oração forte em cima dela, o estouro que eu esperava não veio e, com os poderes de Deus, ficou provado que a bichinha era bem procedida. Entendia perfeitamente a linguagem das pessoas. Eu às vezes dizia, para experimentá-la:

– “Moqueca, você hoje vai dormir no chiqueiro das cabras.” Ela balançava a cabeça, metia-se no chiqueiro e não saía de lá nem por decreto. — “Moqueca, vá comprar um quilo de bacalhau na cidade.” Moqueca segurava o dinheiro com os dentes, galopava para a rua, entrava numa bodega, ia direito à barrica de bacalhau, fazia a compra, pagava, tudo sem erro, pois ninguém se enganava com as intenções dela. Acabado o negócio, voltava correndo, carregando o embrulho. Contava como um cobrador de imposto, e quando um caixeiro lhe deu no troco uma nota falsa, Moqueca latiu, protestou, chamou a atenção do povo e da autoridade. Estas miudezas não têm relação com o porco brabo: servem apenas para mostrar que a cachorra sabia onde tinha as ventas. A especialidade dela era a caça. Caçava sozinha bichos pequenos: enchi a casa de coelhos, preás, mocós, tatus, cutias e aves de pena. E se achava roteiro de animal graúdo, chegava aqui ladrando, corria de um lado para outro, fazia barulho. Só se acomodava na capueira. Foi num desses dias que se deu a desgraça, de que talvez vossemecês tenham tido notícia, porque o caso se espalhou. Moqueca estava pejada, com a barriga pela boca, e a gente esperava que a qualquer momento desse cria. Uma tarde apareceu aí no pátio, latindo, subiu ao copiar e roçou-se nas minhas pernas, dizendo lá na língua dela que havia no mato um bicho grosso, bom para matar. Tentei sossegá-la e falei assim: — “Moqueca, você com esse bucho não aguenta rojão. Vá deitar-se, vá coçar as pulgas e descansar.” Ela não aceitou o conselho e continuou a puxar-me a perna da calça com os dentes. Como não havia meio de aquietá-la, fui buscar a espingarda no jirau, pus a tiracolo o aió, onde guardava o chumbeiro, o polvarinho e as espoletas. Entramos na catinga, e aí a pobrezinha começou a mexer-se com dificuldade, arfando, num trote curto, o focinho para cima, farejando mal. Parece que havia sinais cruzados de animais diferentes, porque a cachorra ia e vinha, latindo esmorecida, sem atinar com um rasto. Aborrecido daqueles manejos, sentei-me, acendi um cigarro e peguei a falar só, recordando coisas antigas, do tempo em que eu e Cesária vivíamos de grande. Os latidos enfraqueceram, enfraqueceram, afinal se sumiram. Pensei no bode, na onça, no papagaio que não mostrou para quanto prestava porque morreu de fome, no olho coberto de formigas, este olho que nunca pude encaixar direito no buraco do rosto e assim mesmo enxerga melhor que o outro. Ora muito bem. Onde andaria o diabo da Moqueca, pesada, com aquela barriga que estava por acolá, perdida entre cipós e espinhos, correndo atrás de um vivente ligeiro? Levantei- me, decidido a voltar para casa, ajeitei no ombro a correia do aió e a espingarda. A cadelinha que fosse para o inferno: ia recolher-me, não havia de ficar ali, esperando os caprichos dela. Ainda levei a mão à orelha, estive um minuto procurando a voz de Moqueca no barulho da catinga. Afastei-me desanimado, entrei numa vereda, com o pensamento longe da caça. Ia anoitecendo. Ouvi pancadas de asas; os olhos de um bacurau desceram e subiram, como duas tochas. Depois foram miados de gato, roncos de suçuarana, urros de bois assustados. Tudo se calou. Quando pisei no copiar, estirei a vista pelo mato e percebi sem querer, muito para lá da ribanceira do rio, a umas duas léguas daqui pouco mais ou menos, a cachorra fincando os dentes no sedenho de um bicho acuado junto a um mulungu. Em redor havia umas coisinhas que não distingui bem. Encostei a espingarda à cara, dormi na pontaria, a carga bateu na pá do bicho. Botei-me para ele. Andei, cortei caminho, cheguei a um mulungu, onde um porco brabo espumava, sangrava e estrebuchava, com vontade de morrer. A cachorra já tinha morrido e estava num estrago medonho: o espinhaço quebrado no meio, as tripas de fora, completamente espatifada. Pelos buracos da barriga tinham saído vários cachorrinhos que, ali perto, criaturas de boa raça, latiam danadamente, os dentinhos agarrados no couro do porco. Latiam direito, em conformidade com o costume. Mas um diferia dos outros: fazia “Hom! hom! hom!”, muito rouco e muito fanhoso. Pobre da Moqueca. Um fim tão triste! Fui examinar os cachorrinhos, saber por que um gorgolejava daquele jeito. Sabem o que havia acontecido? No momento de estripar a mãe o porco tinha cortado o pescoço dele. E o infeliz, sem cabeça, queria proceder como os irmãos. Coitado. Finou-se ali, com poucos minutos de vida, roncando em cima da obrigação. Quem é bom já nasce feito, não é verdade? O sangue tem muita força. Escaparam três cachorrinhos.

– Me arranje um, seu Alexandre, pediu o cego. Estou precisando de guia e um animal desses vinha a propósito.

– Não é possível, seu Firmino, respondeu o dono da casa. Andaram por aí uns tempos, mas desapareceram, acabaram-se. O que tem valia não dura, seu Firmino.

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