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O VULTO DO SALÃO NOBRE

Gilberto Freyre – 1900/1987.

Dizem de certas casas encantadas que suas assombrações têm um ciclo parecido com o do chamado “espectro” — espectro retórico e não psíquico — das secas do Nordeste. As quais têm aparecido com uma regularidade terrível na paisagem e na vida desta infeliz região pastoril do Brasil.

Quando uma assombração cíclica aparece é que a casa — isto é, a família que habita a casa assombrada — vai sofrer morte ou desgraça. Ou então outra experiência que lhe revolucionará a vida, não só para pior como para melhor. Ou num e noutro sentido como é próprio dos acontecimentos que revolucionam a vida dos homens.

Um especialista no assunto, A. T. Baird, no seu livro One hundred cases for survival after death, chama de “assombração premonitora” aquela que anuncia morte, desgraça ou revolução, lembrando que estão nesse caso várias aparições por que se têm tornado famosos alguns dos velhos castelos da Europa. E não poucas das casas referidas por Ingram, em The haunted houses and family traditions of Great Britain, têm suas “assombrações premonitoras” que uma vez por outra cumprem o seu fado de anunciar acontecimentos graves: a “mulher cinzenta” do castelo de Windsor, por exemplo; ou a “mulher de preto”, do outro castelo real da Inglaterra.

No Brasil, consta de algumas casas antigas, uma delas o palácio Guanabara, no Rio de Janeiro, que vivem em estado de permanente desgraça ou azar. Não que algum fantasma de mulher de preto ou de homem pardo — do escravo que dizem ter amaldiçoado o Guanabara, ainda em construção, no tempo do Império — anuncie as desgraças que vão acontecer aos habitantes desses solares ou às casas azarentas, em geral (como aquelas casas de esquina de que diz o povo: “casa de esquina, triste sina”). O que se diz do Guanabara é que as desgraças se sucedem a seus sucessivos habitantes, com terrível frequência: pior do que com a regularidade anunciada por fantasmas como que rítmicos.

Do Palácio do Governo do estado de Pernambuco se conta que quando estão para acontecer desgraças a Suas Excelências seus moradores, aparece um vulto escuro e alto — “eminência parda”? — no salão nobre, que é o grande e dourado que abre janelas antes cívicas do que festivas para a praça da República. Essa crença, recolhi-a de velhos empregados no palácio — que como Palácio do Governo, datando apenas do século XIX, não chega a ser velho, pelo menos para uma cidade do passado já longo e provecto do Recife — no tempo em que, governador de Pernambuco, “o último fidalgo autêntico que governou um estado brasileiro” (como não se cansava de repetir o perspicaz Edmundo da Luz Pinto), fui, com o nome, mas não com as funções, de “oficial-de-gabinete”, uma espécie de secretário particular do ilustre pernambucano, ajudando-o não só a receber e cumprimentar estrangeiros ilustres de passagem pelo Recife (como o dr. Eckner, do Zeppelin, o infante dom Afonso de Espanha, almirantes ingleses, o urbanista Agache, lorde Dundonald, Rudyard Kipling) como — o outro extremo — a tratar com a plebe nas audiências públicas das sextas-feiras, nas quais fazia meu socialismo moderado mas constante, contra os ricos que abusavam dos pobres. Diziam então os empregados velhos do palácio, a mim e a Júlio Belo, cunhado e tio de Estácio Coimbra e que foi, ele próprio, por algum tempo, na qualidade de presidente da Câmara e na ausência do governador, chefe do governo, que o tal vulto — talvez alma de algum morto do tiroteio de 18 de Dezembro, no tempo de Floriano — não tinha hora para aparecer: até com dia claro podia ser visto. Sua constância era de lugar: o salão nobre. Sua insistência, a de dar sinal de desgraça próxima. E ultimamente vinha aparecendo. Não se esquivara nem à luz do meio-dia recifense, que é, talvez, a mais clara luz de cidade do litoral do Brasil. Pelo menos assim pensava Eduardo Prado, entendido tanto em luzes como em sombras: pois segundo Eça de Queirós frequentou em Paris ocultistas, penumbristas e espiritistas.

Estávamos no meado do ano de 1930. Ninguém mais céptico quanto a revolução ou insurreição que o afastasse sangrenta e violentamente do governo de Pernambuco do que Estácio de Albuquerque Coimbra. A situação nacional, esta, há muito que o inquietava. A da Paraíba, doía-lhe como uma dor que à sua sensibilidade de velho político anunciasse tempestade grande para aqueles lados. Mas a situação estadual, não, tais as adesões de políticos oposicionistas que vinha recebendo.

Entretanto, foi Pernambuco um dos poucos recantos do Brasil onde a revolução de 30, antes de tornar-se, como nas ruas do Rio, “carnaval contra o Barbado”, fez correr sangue brasileiro. Das janelas do salão nobre do Palácio do Governo, vi os soldados fiéis ao governador repelirem corajosamente, da ponte de Santa Isabel, ataques a tiros de revoltosos mais bravos ou afoitos. Bravura de lado a lado. Jantamos em palácio debaixo de tiros, mas como se fosse um jantar de dia comum: nenhum pânico. Os tiros quebrando vidraças e nós comendo o rosbife e bebendo o vinho dos dias normais. Só depois do jantar, o governador decidiu deixar o Palácio do Governo, não fugido, como se tem dito maliciosamente ou por ignorância, mas para aguardar no edifício das Docas, no bairro do Recife, o combate que, ainda à noite ou de madrugada, deveria travar- se entre a tropa federal fiel ao governo e a revoltosa, vinda da Paraíba. Esse combate, disse na minha presença ao governador Estácio Coimbra o então comandante da tropa federal do Recife que parecia, ainda, fiel ao governo, ou simulava essa fidelidade, deveria travar-se na descida da ponte de Santa Isabel. A tropa federal precisava, assim, ocupar o Palácio do Governo para fins militares e era urgente que o governador o deixasse. Só assim, e confiante na palavra do militar, que parecia, aliás, homem sincero e sério, o governador constitucional de Pernambuco concordou em passar a noite — a noite da pequena Itararé, anunciada pelo homem d’armas com absoluta segurança — fora do palácio: no edifício das Docas. De que não saiu fugido, prova-o o fato de que o quase Fradique, havendo tempo para preparativos de viagem, apenas levou consigo uma maleta com sabonete, escova-de-dente e água-de-colônia. Mais nada. Nem mesmo chinelos ou pijama.

Tudo, porém, se passaria de modo diferente do anunciado com ênfase militar pelo comandante — talvez ele próprio iludido — da tropa federal. Estácio Coimbra e os que o acompanhavam foram obrigados a deixar, nessa mesma noite, o edifício das Docas, num simples rebocador e este quase sem combustível. A Itararé às margens do Capibaribe fora, como a outra, batalha só de boca. Não houve. O Exército, talvez acertadamente do ponto de vista político, isto é, do ponto de vista do interesse nacional, decidira confraternizar com o movimento revolucionário sustentado, de resto, por três estados, dois deles ricos e fortes — Rio Grande do Sul e Minas Gerais — e um, abusado na sua fraqueza pela política espantosamente inepta que, em face da inquietação paraibana e pelo estado de espírito brasileiro — um estado de espírito mais ou menos revolucionário — tornara-se a política do então presidente da República. Mas em Pernambuco, o representante do Exército, para proceder de modo nacional ou politicamente certo, tivera que iludir o homem de boa-fé que confiara na sua palavra; e que por ter confiado na palavra firme de um militar, decerto bem- intencionado e talvez — repita-se — ele próprio iludido por terceiro — ficaria com a fama de fujão e de covarde.

Nem fujão nem covarde. Estácio de Albuquerque Coimbra, em face da insurreição de 30, portou-se varonil e dignamente.

Mas que tem que ver tanta história política com a história sobrenatural do Recife? Que tem revolução com assombração?

Simplesmente isto: ao descer Estácio Coimbra do seu quarto para deixar o palácio e passar a noite — a noite decisiva, dissera-lhe o tal militar — no edifício das Docas, ainda que a escuridão fosse quase completa, o tiroteio de revoltosos contra o pequeno grupo de legalistas aumentou terrivelmente. Era grande o risco que ia correr cada um de nós. Já havia mortos. Desde a madrugada que se combatia em redor do palácio. Um carro blindado do governo fora feito em pedaços. Eu próprio vira partir contra os revoltosos, com um grupo de soldados jovens aos quais quase me juntara, não por heroísmo mas por curiosidade e fiado em que o tal carro fosse na verdade inexpugnável, o suposto carro blindado que se revelara um carro de suicidas e se despedaçara como se fosse um brinquedo grande, todo feito de latas de doces de goiaba.

No instante em que nos aproximamos do portão do lado da casa do mordomo para deixar, não por uma noite, como supúnhamos, mas para sempre, o Palácio do Governo, velho empregado da casa — um dos que desde junho me garantiam vir avistando o vulto do salão nobre que anunciava desgraça — segredou-me, de certo modo, triunfante: “Eu não lhe dizia que o vulto do salão nobre vinha anunciando desgraça? Quando ele aparece é para anunciar desgraça. Não falha. Apareceu a Zé Bezerra que morreu logo depois. Apareceu a Barbosa antes do cozinheiro de Zé Mariano espalhar veneno na fritada que quase mata mais de cem cascudos de uma vez. E há meses que vinha aparecendo, aparecendo, como quem quisesse dizer alguma coisa de muito importante a dr. Estácio. Era isso que está aí.”

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