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Crônica / Conto

SOBRE O INFERNO

Rubem Braga – 1913/1990.

O Inferno são os outros” – diz esse desagradável senhor Sartre no final de Huis Clos, e eu respondi “eu que o diga!”. Hoje estou com pendor para confissões; vontade de abrir meu peito em praça pública; quem for pessoa discreta, e se aborrecer com derrames desses, tenha a bondade de não continuar a ler isto.

Conheci um homem que estava tão apaixonado, tão apaixonado por a mulher (acho que ela não gostará dele), que uma vez estávamos nós dois num bar e no meio da conversa ele disse fremente:

– Isso é o maior verso da língua portuguesa!

Fiquei pateta, pois não escutara verso nenhum. Ele então pediu silêncio, e que ouvisse. Havia conversas na mesa ao lado, ruídos vários lá dentro, autos e ônibus que passavam, um bonde na outra rua, um violoncelo tocando num rádio qualquer, e lá no finzinho disso, longe, longe, um outro rádio com o samba que mal se podia ouvir e só era reconhecível pelos fragmentos de música que nos chegavam. O maior verso da íngua portuguesa estava na letra daquele samba e avisava que “Emília, Emília, Emília, eu não posso mais”.

Ele não podia mais. Ninguém pode mais com o inferno de Emília e ninguém sai dele, pois ninguém pode sair do inferno. Estou informado de que alguns moços leem às vezes o que escrevo, e isso me comove e ao mesmo tempo me dá um senso de responsabilidade. Sim, devo pensar nos moços e cuidar de dizer coisas que os não desorientem. Falar do inferno, por exemplo, é mau. Dante e outros espalharam muitas notícias falsas a respeito, e a pior delas é que para lá vão os culpados.

Na verdade para lá se vai pelo caminho da maior inocência, assobiando levianamente talvez, escutando os passarinhos que trinam de alegrar o coração e com o passo estugado e leve de quem sente um grande prazer em ajudar. Ah, caminhos de vosso corpo, distante amada. Pensar que neles passearam em tempo antigo minhas mãos, estas mesmas mãos que estão aqui; ah, queridos caminhos, inesquecíveis e divinos, quem diria que me haveríeis de conduzir a esta ilha de silenciosa tortura e atra solidão. Emília, Emília, Emília! Sabei, moços, que há inferno, e não fica longe; é aqui.

Eu pensava essas coisas vãs e me sentia muito cansado, e uma grande amargura estava em meu coração. Cruzei os braços sobre a mesa e neles descansei a cabeça; e como que adormeci. Então tive uma grande pena ~ de minha alma e de meu corpo, e de todo mim mesmo, pobre máquina de querer e de sentir as coisas. Ponderei o meu ridículo e a minha solidão, e pensei na morte com um suave desejo.

A certeza da morte me pareceu tão doce que se fosse figurá-la seria como a casta Beatriz que viesse passar a mão pela minha cabeça e me dizer para dormir. E sob essa mão doce, minha cabeça iria sossegando, e a memória das coisas ruins iria andando para trás, e se deteria apenas em uma hora feliz. E ali, ó mais amada de todas as amadas, tudo seria tão puro e tão perfeito que a brisa se deteria um instante entre as flores para sentir a própria suavidade; e então seria bom morrer.

Mas o jornalista profissional Rubem Braga, filho de Francisco de Carvalho Braga, carteira 10836, série 32 registrado sob o número 785, Livro II, fls. 193, ergue a fatigada cabeça e inspira com certa força. Nesse ar que inspira entra-lhe pelo peito a vulgar realidade das coisas, e seus olhos já não contemplam sonhos longe, mas apenas um varal com uma camisa e um calção de banho, e, ao fundo, o tanque de lavar roupas de seu estreito quintal, desta casa alugada em que ora lhe movem uma ação de despejo.

E é bom que haja uma ação de despejo, sempre devia haver, em toda casa, para que assim o sentimento constante do precário nos proibisse de revestir as paredes alheias com nossa ternura e de nos afeiçoarmos sem sentir até à humilde torneira, e ao corrimão da escada como se fosse um ombro de amigo onde pousamos a mão.

Sinto com a máxima precisão que as letras, nos bancos, se aproximam precípites de seus vencimentos, e que os deveres se acumulam com desgraciosa urgência, e tudo é preciso providenciar, telefonar, mercadejar, sofrer.

Suspiro como Jorge Machado Moreira, meu antigo corresponsável, e Luís Vaz de Camões, meu antigo poeta, sobre tanta necessidade aborrecida. E acabando o suspiro me ergo e vou banhar o triste corpo, porque a alma, oh-lá-lá, devo mergulhá-la não no sempiterno Nirvana, porém na desgraça miúda e suja da jornada civil, lítero-comercial, entre apertos de elevador e palavras sem fé. Dou apressado adeus a mim mesmo e o bonde São Januário, disfarçado em escuro e feio lotação, leva mais um operário.

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