Chico Anysio: 1931/2012.
O lugar era tão bonito, o clima tão bom, as flores tão rosas e as vacas tão bovinas, que o chefe da família achou que valeria a pena comprar ali uma fazenda.
Consultou a família que, de pronto, foi contra. Isto colaborou demais para que o chefe da família entrasse, imediatamente, em conversações com o proprietário de uma, que se queria desfazer da fazenda, por achar que ela estava num lugar que não era lá essas coisas, o clima era idiota, as flores não fugiam daquela variedade: rosas, rosas, rosas, e as vacas, coitadas, eram simplesmente bovinas — numa total falta de imaginação. Vá-se querer que as vacas tenham isso!
O negócio foi fechado por um dinheiro grande, e a família tomou posse da propriedade dois dias depois, data que coincidia com a véspera do fim das férias.
A fazenda ficava num vale e era separada em duas partes por um córrego como o que só corre na infância dos escritores. Tinha matas e vacas, rosas e charcos, galinhas e caseiros.
— Uma idiotice, comprar essa fazenda — vaticinou a esposa, numa contrariedade de quem faz doze pontos.
— Comprar terra sempre é bom negócio vibrou o chefe da família, puxando o ar, a encher o peito com um cheiro de estrume que vinha do estábulo. — Olhe em volta. Até onde a vista alcança, tudo é nosso. Está vendo o abacateiro? É nosso; Aquele caqui-chocolate? É nosso. A carreira de jabuticabeiras? Nossa. O mato, a casa, a cocheira, o estábulo, o caminho, tudo é nosso. Esse céu, que cobre a fazenda, é o único pedaço de céu que é nosso, porque 0 da cidade é do governo. Aqui, mandamos nós, porque aqui tudo é nosso!
— Pra quê? — sintetizou a mulher, numa pergunta de esposa.
— Ora — explicou admiravelmente o chefe da família —, para ser nosso. Nossa terra, nosso chão, nosso cantinho, nossas rosas! — e pegou numa, furando o dedo.
Durante o curativo no dedo magoado um dos trabalhadores da fazenda aproximou-se com uma notícia muito importante: a fazenda acabava de crescer de valor pelo nascimento de uma bezerrinha.
Viu? — comentou, vitorioso, o chefe da família, batendo nas costas da esposa, de modo a fazê-la cuspir a primeira jabuticaba que tentava comer. – Nasceu uma vaquinha!
A notícia correu para os demais da família ao mesmo tempo em que, para os pais, corriam os filhos, estes, sim, felizes, ao saber do nascimento da novilha.
— É menino ou menina? — perguntou um menino que, de tão longos cabelos, nem se sabia se era menino ou menina.
– Não é assim que se fala, menino – esclareceu o pai. – A pergunta é: bezerra ou bezerro? É uma bezerrinha.
— Vamos ver? Vamos ver? gritavam os filhos a sugestão lógica das crianças que nunca viram vaca a não ser nos desenhos das latas de leite em pó. .
Foram. A vaca não deixou que se aproximassem da cria, que ficou sendo observada a distância pela família encantada e pelo caseiro indiferente e até um pouco irritado por haver uma vaca a mais no seu mundo.
— Quem é o pai? – perguntou a moça mais taluda.
—Um boi desses – errou 0 pai.
— Um touro! — corrigiu o caseiro, sabedor ele de que o boi é um touro que já era; boi é um touro que perdeu os documentos.
– Pois é — emendou o pai na mesma veemência —, um tourão danado desses. Olha a carinha dela. Os olhinhos ainda estão fechados.
— Vamos batizar! – gritou um menino.
— Boa idéia – concordou 0 chefe da família. — Quem vai escolher o nome?
— Eu. Eu. Eu. Eu — disseram, um a cada vez, os quatro filhos do casal.
E começou a discussão sobre o nome a ser posto na recém-nascida que, indiferente a tudo, mamava na mãe, provando, assim, que ela (a mãe) não era tão vaca quanto julgavam.
— Aretha Franklin!
— Janis Joplin.
— Jimi Hendrix — sugeriu o mais velho —, porque, até que me provem o contrário, essa vaquinha é touro; deixa levantar que vocês vão ver.
— É fêmea, que o caseiro viu — afirmou o pai, voltando-se para o caseiro, na indagação do que já afirmara: — O senhor não viu?
— Vi. É fêmea.
E tome de gritar nome: Califórnia, Disneylândia, Erva Maldita, Otorrinolaringologia… Havia os nomes sugeridos a sério e os de gozação. Todos os que citei eram os a sério. Finalmente, o bom senso ajudou a solucionar o impasse. Foi a esposa quem sugeriu o nome que lhe pareceu o mais indicado para a novilhazinha que mamava no seio vaquerno: Long Island.
— Desculpe — desculpou-se o caseiro por não entender.
— Long Island — repetiu a mulher com uma naturalidade de quem fala “mococa”.
— A senhora podia escrever? — pediu o caseiro, confessando-se incapaz de decorar aquilo.
Arranjaram uma pequena tábua onde, com um prego, o chefe de família escreveu: LONG ISLAND, tabuazinha que, com o auxílio de um arame, ficou presa no pescoço da novilha para que ninguém, na fazenda, esquecesse que aquela jovem bovina atendia pelo nome de Long Island, nome que fica muito bem para parque de diversões, mas que não é dos mais adequados para quem cara de Mimosa, Formosa, Maravilha ou Vaquinha — modo, inclusive, que melhor ajuda o reconhecimento da peça.
Acabadas as férias, a família voltou à sua poluição metropolitana e só pôde retornar à fazenda dois anos depois.
Tudo continuava como dantes, com exceção de uma coisinha em pior estado, uma das quais o geral.
— Caseiro! — chamou o chefe de família, que não sabia que o caseiro tinha nome: José Caseiro da Silva.
— Pronto, doutor — obedeceu o caseiro meia hora depois, com a presteza de
um favor bancários.
— Como vai a novilha?
— Está uma vaca! — elogiou o caseiro de um modo que soou ofensa aos ouvidos da família.
— Já dá leite? — perguntou um dos filhos.
— Dá, né? respondeu o caseiro estranhando a pergunta, pelo fato de saber (ele é acostumado, porque vive ali) que as vacas não dão outra coisa senão leite.
— Pois eu quero beber um copo de leite da novilha — ordenou a esposa do chefe, madrinha de batismo da vaquinha.
E o caseiro, sem que a família ouvisse, comandou a um seu auxiliar que tirasse um pouco de leite da vaca “Tabuleta”.