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A CATÁSTROFE E O VOTO

Paulo Cotias (*)

Explorar a miséria humana sempre foi a via mais fácil de angariar engajamento e criar uma aura de virtude. Por outro lado, é na miséria humana que podemos encontrar, muitas vezes, a professora e a lição que nos chama tanto à responsabilidade, quanto nos oferece um caminho de consciência. E assim tem sido com relação aos eventos climáticos extremos que temos vivenciado. Por óbvio, a natureza possui seus próprios ciclos. Eles formam intricados processos cuja articulação tem sido cada vez mais conhecida pelos estudos contemporâneos. Dito em outras palavras, o que acontece no Saara impacta na Amazônia, por exemplo. A alternância climática, o regime de chuvas, ventos e condições como o frio e o calor acima da média possuem sim uma base natural, aquela na qual o planeta vivo se esforça para manter em equilíbrio.

Porém, a distorção delirante desse argumento e a criação de outros mais próximos da cretinice e da pseudociência, têm sido usados em desfavor de uma responsabilização e tomada de medidas adequadas por parte das sociedades humanas quanto a enorme parte que lhe cabe na degeneração planetária e no agravamento das condições naturais, seja pela poluição avassaladora, pelo desmatamento agressivo, pela contaminação irresponsável, pelas guerras monstruosas, entre outros malfeitos.

Desde quando caminha na Terra o homo sapiens sempre causou impactos à natureza. No entanto, enquanto dela se via como parte, os danos eram absorvidos ainda que alguns tenham sido irreversíveis como a extinção de animais por meio da caça e o favorecimento de certas espécies vegetais e animais que prosperaram artificialmente por causa da agricultura e da criação. Se fôssemos contabilizar por biomassa ou até por população, o gado, o frango e os inofensivos milho, soja e trigo seriam campeões absolutos no ranking dos bem-sucedidos na evolução. Afinal, esse sucesso também se explica pela capacidade de reprodução e permanência (a questão é que milho, vacas, soja, trigo, soja e frango nada fizeram por “si só” para subir ao podium).

E, assim, o homo sapiens passou a direcionar sua poderosa capacidade racional, sua inigualável habilidade de comunicação complexa e seu poder único para a abstração e o simbolismo, no sentido de construir para si um lugar fora da natureza. É a peça de resistência do nosso drama enquanto espécie. Na Era Industrial, a qual usamos como parâmetro (o antes e o depois dela) para as medições da temperatura global e condições de salubridade do ar, das águas e do solo, levamos esse conjunto de capacidades ao extremo da irresponsabilidade. Criamos nosso avançado mundo, é verdade, mas não conseguimos fazê-lo sem deixar uma pilha monumental de destroços, de corpos, de extintos e de devastação.

A força que mantém tudo isso em franca e descontrolada marcha é o mal. Nessa força, cerram fileiras os que não veem limites e escrúpulos na realização das suas ambições mesquinhas, estão nelas os negacionistas e toda a sua vasta bagagem de estupidez e truculência, os dissonantes cognitivos e sua perversa falsidade. E há um lugar especial para os políticos irresponsáveis e corruptos.

Quando nos perguntamos sobre o que podemos fazer para ajudar o planeta e a nós mesmos enquanto espécie, geralmente estancamos nas atitudes mais básicas (ainda que muito importantes) como o cuidado com descarte do lixo, o uso consciencioso da água, eventuais doações para organizações de suporte ou mesmo nos tornarmos mais bem informados sobre os assuntos relacionados ao meio ambiente. O que esquecemos é de não votar ou apoiar politicamente os negacionistas, sobretudo os que são visivelmente neofascistas. Quando você maquia a verdade, de que esse tipo de político é um “articulador”, um “conservador palatável”, um “autêntico”, um “diferente” e com isso dá o endosso e o voto na vã esperança de um benefício pessoal, deve também estar preparado para compartilhar da culpa pelos extremos e catástrofes no tribunal da história.

Você pode não enxergar o neofascismo no seu candidato, o que não fará dele menos neofascista e muito menos retirar a sua culpa por alegada ingenuidade. Cada morto, cada enchente, cada ar irrespirável, cada desmatamento, cada garimpo ilegal, cada veneno em nosso prato, em nossa água, cada epidemia que retorna pelo desdém às vacinas e medidas preventivas, ou seja, cada obra do mal que passa pela atuação desse tipo de gente que você elege, terá a sua digital permanente. Portanto, ao ver o noticiário sobre as misérias humanas, tente avaliar sua consciência. A não ser que você seja igualmente um neofascista negacionista militante e convicto. Nesse caso, esse tipo de notícia será motivo de orgulho e satisfação pois, para você, as coisas estão melhorando. Não é mesmo?

Paulo Cotias é professor, historiador, psicanalista e escritor. Autor de 12 Lições Contra o Neofascismo (www.sophiaeditora.com.br).

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