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O CAJU

José Henrique Nogueira

Aqui estou eu de volta ao bairro do Humaitá, já que lá pelos anos noventa andei morando por aqui. Na época, morei na Rua Engenheiro Marques Porto; era professor na Escola Sá Pereira, na Rua Capistrano de Abreu, e na Favinho de Mel, na Rua Martins Ferreira, tudo na área. Se não me engano, também foi nessa época que fui professor de música durante três anos no Colégio Pedro II na unidade Humaitá, embora atuasse lá em São Cristóvão também.

Sempre achei interessante o nome Capistrano de Abreu. Sempre foi um desafio para mim, assim como um prazer linguístico falar com a dicção correta os seus belos e perigosos encontros silábicos, quase um “trava-línguas”. Ca-pis-tra-no.

O nome Humaitá, em Tupi-Guarani, segundo muitos estudiosos, significa “pedra preta”. E não faltam por aqui enormes pedras pretas ao redor. Uma delas é o Corcovado, onde repousa o Cristo Redentor. Realmente um belo vale, que, quando chove, a água escorre pelas encostas das pedras pretas e vão para a Lagoa por um lado e para a praia pelo outro lado.

As flores, as plantas e as frutas ainda estão presentes na Cobal. Que bom que elas ainda estão por aqui! Dentro, muitas lojas fechadas e outras resistindo. O quiosque do mel continua firme. Que bom! Um dia desses, passei e avistei alguns sapotis sendo vendidos em uma das bancas de frutas. Tenho, entre outros, fortes motivos culturais para gostar dessa fruta. Por isso, seu alto preço não me desmotivou a arrematar quase todos os sapotis nas duas vezes que os encontrei. Claro que sem antes dar uma pechinchada, na verdade uma verdadeira “chorada”, como se eu achasse, e acho, um absurdo me cobrarem pelos sapotis. Como se eles, os sapotis, me pertencessem. Tal sensação já superei pela fruta-do-conde. Já entendi que preciso pagar por elas para tê-las e já o faço sem chorar. Quanto aos sapotis, eu acabei comprando, é claro. Eu os comprei e chorei; também de saudade. Sapotis e frutas-do-conde viviam plantadas nos quintais dos meus avós maternos e paternos em Cabo Frio.

Com o caju também não sofro mais. Compro e pronto. Eu sinto o cheiro de seu perfume a uma grande distância, e meus olhos fixam-se neles de tal maneira que me desligo por milésimos de segundos, certamente “viajando” pelo meu passado. Nem sempre decido levá-los. Preciso estar empolgado para eles, e nesse dia estava. Comprei-os nas bandejinhas com três ou dois cajus cada uma. Fui para casa feliz pensando de que maneira iria traçá-los. Na caipirinha, maravilhoso! Como suco, uma belezura! In natura, uma aventura!

Inúmeras vezes, chegando em casa com as compras, pego um caju, um bonito. Seguro na castanha, dou uma lavada, me debruço sobre uma pia ou um tanque e meto os dentes nele. Boca cheia de suco prestes a me lambuzar, as fibras do corpo da fruta resistindo e criando certa dificuldade para meus dentes triturá-los enquanto espreme o sumo. O maxilar sempre trabalhando intensamente, de forma viril, assim como a língua. Enfim, é preciso de uma certa intensidade corporal, quase animalesca, para se atracar com o caju.

Essa intimidade se deu ao fato de ter estado sempre próximo a pés de caju. Na chácara do meu avô Joaquim Nogueira, em Cabo Frio, perto de suas salinas, as Salinas Viveiros, havia um pomar com vários pés de caju completamente adaptados àquele solo arenoso, típico de restinga. Um cajueiral, assim dizendo. E minha mãe, que certamente adorava os cajus ainda mais do que eu, essa sim frequentou essa linda chácara dos meus avós e suas salinas com seus moinhos de vento. Brincava, corria e descansava na Casa Grande, onde morava com seus onze irmãos e agregados.

Heloisa, minha mãe, transformava os cajus em doces em calda e os guardava em compotas sempre lindas e cristalinas, que criavam aquele aspecto mágico e nobre que tal ofício merece. Fazer, preparar, criar um doce é sinalizar que houve uma transformação, uma criação, e o resultado precisa ficar exposto como um troféu. É preciso celebrar. As compotas coloridas (verde: figo, vermelho: goiaba, amarelo: caju, etc.) dentro da geladeira e sobre as mesas de boa madeira alegravam a casa, como bem as cores sabem fazer.

Durante minha infância e juventude em Niterói, assisti de camarote a muitos doces sendo feitos em cozinhas sempre espaçosas e generosas das casas dos meus pais. Certamente uma exigência da minha mãe, que viveu sua infância na Casa Grande do salineiro Joaquim Nogueira, seu pai em Cabo Frio.

Me lembro perfeitamente; conheci a Casa Grande. Permaneceu de pé abrigando e acolhendo a todos que nela entravam durante muitos anos. Os quartos, corredores e salas enormes eram todos revestidos com piso de pinho-de-riga e produziam um som grave, maravilhoso; impossível não saber quando alguém chegava. A cozinha enorme, com resquícios de azulejos hidráulicos no piso, linda, forte, funcional, de dimensões necessárias para alimentar uma tropa de 12 irmãos, parentes, amigos, empregados e quem mais chegasse.

Para fazer o doce de caju, era preciso retirar sua pele fina e sedosa, ora vermelha, ora amarela. Para isso, minha mãe estocava várias cascas (conchas) de tamanhos diferentes de mexilhão. Tais conchas, de formato comprido de cor amarronzada, eram usadas como ferramenta para descascar o caju. Com a parte fina e cortante, retirava-se com delicadeza a pele do caju. Eu, quando criança nas minhas longas férias em Cabo Frio, trazia do mar boas conchas desse tipo para minha mãe. Ela as olhava e as manuseava de maneira bem profissional, a ponto de escolher e separar as boas para o ofício de descascar o caju. Eu mesmo descasquei cajus com essa ferramenta, mas muito poucos, pois o espaço da cozinha era só para profissionais. Entendi que com a concha a fruta fica intacta, não fere o corpo do caju. Com o caju perfeito, a compota fica mais bonita.

Nesse dia, na Cobal, levei para casa todas as frutas de que gosto muito. Sapoti, caqui, fruta-do-conde, cerejas (que entraram recentemente na minha vida) e caju. Estava disposto a fazer um doce em calda. Herdei uma compota de cristal, original do acervo da minha mãe. É fundamental um bom local para o armazenamento de um doce. Assim que cheguei em casa com as frutas, as lavei e as guardei na geladeira.

A minha falta de tempo estava fazendo com que o caju, que estava na geladeira, começasse a ficar passado. Seria imperdoável deixar o caju apodrecer, e eu precisava de tempo para resolver. Até que um dia abri a geladeira, peguei os cajus e os lavei. Cortei em pedaços e os joguei no liquidificador, coloquei um pouco de água mineral e bati com casca mesmo. Consegui um sumo grosso, que era o que eu queria no momento. Precisava resolver. Peguei uma garrafa plástica vazia e a enchi totalmente, até a boca, com o sumo de caju e coloquei a garrafa no congelador. Pronto, minha primeira missão estava cumprida. Salvei os cajus de terem se apodrecido na geladeira. Agora era ter um tempo para resolver e pensar no que fazer com uma pedra de sumo de caju congelado. As castanhas eu as plantei na pouca terra que tenho no quintal.

Os dias passavam, eu abria o congelador e olhava a garrafa de plástico com suco de caju, e a garrafa olhava para mim. Ficamos assim nesse namoro alguns dias. Precisava de uma peneira. Comprei. Precisava de um bom liquidificador. Também comprei. Até que chegou um dia em que tomei a decisão de encarar o sumo de caju congelado. Para adiantar o serviço, cortei o plástico da garrafa de um litro e coloquei a pedra de gelo de caju dentro de uma pequena bacia de plástico. Quebrei a pedra em pedaços menores e as coloquei no liquidificador. Coloquei um pouco de água mineral e bati o caju em gelo até transformá-lo em líquido novamente. Coei o sumo com o auxílio de uma boa colher de pau para dentro de um recipiente plástico e reservei a pasta de caju que ficou na peneira.

Adocei o suco com um pouco de açúcar cristal, bati novamente no liquidificador e guardei na geladeira, não sem antes encher um copo do suco para mim. Parti então para a segunda etapa: fazer uma geleia com a pasta de caju que sobrou na peneira. Durante algum tempo, até chegar ao ponto, é preciso ter paciência e atenção na feitura da geleia. Mexer constantemente, deixar quieto por alguns segundos até o doce borbulhar na panela, voltar a mexer. O importante é não desgrudar o olho do doce. Mexer, mexer, mexer até sentir que a pasta está agarrando ligeiramente no fundo da panela. A colher de pau, ao passar no fundo da panela desgrudando o doce, gera um ruído característico. É o ponto do doce chegando.

Desliguei o fogo. Provei a geleia na mão. Delícia! Tampei a panela. Enchi meu copo de suco de caju novamente, pois já estava vazio. Agora era deixar a geleia descansar e colocá-la num recipiente de vidro. Claro que não resisti e a comi ainda quente com torradas e suco de caju. O suco ficou delicioso, e o litro que estava na geladeira, à noite já não havia uma gota para contar história. As castanhas que plantei no quintal germinaram e passam bem.

José Henrique Nogueira é Educador Musical, Musicoterapeuta e primo do Totonho.

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11 respostas em “O CAJU”

Lindo texto, Zé! Me emocionou muito. Passei um tempo na Casa Grande enquanto esperava pelo nascimento de Helena. Lá,entre roseiras de d. Vera, “plantei” seu umbigo… Conheci as compotas maravilhosas das três irmãs: Vera,Luizinha e Badinha. Quando faço alguma, sempre me pergunto se o ponto da calda estaria aprovado por elas…E então, capricho. Eu também ainda fico espantada com os preços das goiabas, cajus, frutas de conde e carambolas que tínhamos nos quintais ou ganhávamos do sítio de tio Fernando. Acho que seu texto daria um enredo sobre o caju mil vezes melhor do que fizeram dele na Marquês de Sapucaí. Parabéns pelo texto tocante e tão bem escrito.

Lindo texto, Zé! Me emocionou muito. Passei um tempo na Casa Grande enquanto esperava pelo nascimento de Helena. Lá,entre roseiras de d. Vera, “plantei” seu umbigo… Conheci as compotas maravilhosas das três irmãs: Vera,Luizinha e Badinha. Quando faço alguma, sempre me pergunto se o ponto da calda estaria aprovado por elas…E então, capricho. Eu também ainda fico espantada com os preços das goiabas, cajus, frutas de conde e carambolas que tínhamos nos quintais ou ganhávamos do sítio de tio Fernando. Acho que seu texto daria um enredo sobre o caju mil vezes melhor do que fizeram dele na Marquês de Sapucaí. Parabéns pelo texto tocante e tão bem escrito.

E com esse texto, suave e muito saboroso, me lembrei da minha pré adolescência, quando passava férias em um sítio em Vargem Grande. Cama, coco, goiaba, seriguela e, principalmente, caju. Meu maiô, antes amarelo, passou a ser rajado de marrom. E lá ia eu, bacia na mão, aparar e ir comendo os cajus que meu irmão tirava do pé. Lembranças boas…

Também gostei muito do texto. Voltei no tempo com saudade das compotas de caju da querida tia Celita. Provamos do bom e do melhor, agora só me resta comprar o caju in natura,vendidos a preço de ouro,mas sem toda a ternura com que nos eram oferecidos no passado.

Muito bom Zé, belas recordações de um Cabo Frio antigo, da casa dos nossos avós e das habilidades de mamãe e nossas tias para os doces caseiros. Vc também comeu muito “caju” na nossa casa de Niterói. Um beijo

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