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A VELHA CIDADE GUERREIRA

Fico olhando este pedaço de rio, agora tão diferente do que vi da outra vez em que estive aqui. Não é uma diferença física, exceto talvez por um detalhe ou outro, que eu não lembraria, de qualquer forma. Olho muito para o rio, detido à sua beira e recordando as histórias que me contaram daquela vez. Dentro dessa água escura e gélida, me disseram então, havia lâminas afiadas e outros aparatos diabólicos, destinados a matar quem quisesse passar para o lado de cá, nadando abaixo da superfície. Acolá, o bunker de Hitler, a poeira do muro esboroado, quepes de oficiais do Pacto de Varsóvia empilhados entre pedaços de pedra e argamassa como frutas numa feira, meninos saltando ruidosamente sobre um cordão de isolamento desmoralizado. Em outro ponto, mementos simples de alguns dos que foram assassinados na passagem, grupos de turistas, motoristas de ônibus entediados, árvores circunspectas que talvez tenham estado ali, em sua verde indiferença, antes de qualquer um de nós nascer e certamente continuarão lá, como o rio e os acontecimentos naturais, depois que todos nós morrermos.

Volto à beira d’água, sofro um acesso de filosofia barata — a única de que sou capaz. Sim, não se passa duas vezes pelo mesmo rio. Colaboro com o bom Heráclito, autor deste velho pensamento, e acrescento, me sentindo meio com vontade de não estar em lugar algum, que tampouco se vê o mesmo rio duas vezes. Agora, neste sítio, os restos despedaçados de tanta História substituem, entre camelôs e japoneses sorridentes, a atmosfera espessa, quase sólida, que aqui encontrei da outra vez. O que existiu realmente existiu? Algo importa além do presente? Há realmente uma História, somos de fato herdeiros de alguma coisa, ou somos eternos construtores daquilo que a memória finge preservar, mas apenas refaz, conforme suas variadas conveniências, a cada instante que vivemos?

De qualquer maneira, mesmo que eu continue aqui, com ar de bobo, Heráclito num canto da cabeça e Parmênides no outro, a História, vamos e venhamos, é ridícula. Espécie atrasada, a nossa, animais primitivos. Malgrado meu, o acesso filosófico se renova. Lembro o velho Werner Jaeger, cujo Paidea li febril, ainda adolescente, e me pergunto se efetivamente aprendemos alguma coisa. Por que tanto se matou e tanto se mata? Que se conseguiu com tudo isto que presentemente me rodeia, tudo tão grávido das tragédias de que foi testemunha e é monumento — ao mesmo tempo tão vazio e leve como o piquenique dos meninos, ali em frente?

Um velho comunista amigo meu, também escritor, me deu um telefonema perplexo, quando o muro começava a desaparecer e as novas da Europa Oriental nos atropelavam a cada hora. Durante décadas, ele amargou todo tipo de perseguição, ostracismo, prisão, clandestinidade, exílio, perdas humanas e materiais. Assim como ele, que pelo menos está vivo e sadio, milhares e milhares de outros brasileiros, milhões e milhões de outros homens e mulheres pelo mundo afora, uns à esquerda, outros à direita. A troco de quê? — me perguntava ele. A troco de quê, tanto sofrimento, tanta desilusão, tantas mortes, torturas e angústias? Que se obteve por via de tanto rancor e ódio, tantos corações amargurados, tantas famílias destruídas, tantos jovens que não tiveram tempo de viver, tanta coisa em que, se formos pensar muito, não poderemos conter a náusea e a angústia?

Não soube responder-lhe, claro. E saberia menos ainda, aqui nesta velha cidade guerreira da Prússia, olhando esta água, estas cruzes, esses nomes inscritos em pedra e ferro, esse muro sinistro, esse bunker assombrado, a outra Berlim do lado oposto, que em breve não mais será a outra, como esta não será mais a mesma. Imaginava, antes de chegar aqui, que seria tomado por um sentimento de alegria, euforia mesmo, ao rever este pedaço de Berlim soprado pelos ventos da abertura, da liberdade. Mas o contrário acontece. Penso em minhas andanças pela cidade e, embora continue gostando muito dela, reconheço que não é mais tão afável e amena quanto antigamente. Os visitantes do Leste aglomerando-se, como crianças deslumbradas, nas ruas, lojas, estações e praças, parecem irritar muito os berlinenses deste lado — a vida passou, talvez, a se afigurar desarrumada, quase caótica. As pessoas, em vez de visitadas, se sentem invadidas. O outro não é mais irmão, seja por nacionalidade, seja por comum humanidade. O outro é um intruso, cuja fala, modos e fraquezas são inaceitáveis. A solidariedade, antes retórica, hoje há que ser concreta e, de novo, a distância entre as palavras e os atos se mostra bem maior do que previam o discurso abstrato e a emoção vicária. O que está acontecendo não é o que tanto se queria? Queria-se mesmo? Como tudo parecia fácil antes de o muro cair, como surgem dificuldades agora — será que a Humanidade nunca acerta?

Não tenho medo dos alemães, como tantos dizem ter, até mesmo muitos alemães com quem converso. Não tenho medo da velha cidade guerreira. Mas tenho medo de gente em geral e resolvo sair deste lugar aonde vim passear, antecipando sentimentos tão diversos dos que abrigo neste instante. Vou para o ponto de ônibus, passo por um grupo de aspecto tímido, homens, mulheres e crianças carregando sacolas e falando baixo. “Polen”, resmunga uma mulher junto a mim, com um olhar antes muito raro aqui, e acrescenta qualquer coisa que não entendo, mas de que tenho certeza de que não gosto. Resolvo que estou pensando bobagens demais, entro no ônibus, retribuo o sorriso de uma velhinha de chapéu festivo e decido que, no caminho de casa, vou descer na Adenauerplatz, para dar uma espiada nos canteiros de flores, que este ano apresentam aos passantes atentos umas tulipas que só vocês vendo.

João Ubaldo Ribeiro (1941/2014).

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