
Conheciam-se desde crianças. Depois a vida os separou. De onde em onde, tinham encontros acidentais no meio da rua e rememoravam episódios da infância:
— Lembra-te daquela tapona que eu te dei? Tua mãe até foi fazer queixa, hein?
O outro, com a nostalgia do tapa, confirmava:
— Me lembro, sim. Houve um banzé tremendo por causa disso.
Suspiravam:
— Bom tempo! Bom tempo!
Quando se despediam, Hermes, ou Durval, fazia a ressalva:
— Bye, bye. Mas olha! Precisamos bater um papo!
— O.k.
O fato é que, embora a distância, cultivavam essa amizade velha. Hermes
continuou solteiro e Durval acabou casando. E num dos seus encontros acidentais, Durval procurou nos bolsos uma fotografia e a exibiu para o amigo:
— Retrato de minha mulher. Acho que dei um grande golpe casando. Minha mulher é um anjo, só você vendo.
Hermes olhou a fotografia e não teve maior impressão. Parecia uma dessas
pequenas nem feias, nem bonitas, que nem chovem, nem molham. No fim da conversa, Durval teve a ideia:
— Queres ir jantar lá em casa, amanhã?
— Boa ideia.
— Batata?
— Batata.
O Primeiro Encontro
E, de fato, Durval estava muito bem-casado. Talvez Clarita não fosse exatamente um anjo. Teria seus defeitos, como todo mundo; mas o fato é que fazia a vida do marido, no lar, bem suportável e trazia a casa que era um brinco. Além disso, dera ao esposo um filho então com três anos, que era insofismavelmente um primor, diziam biscuit. As senhoras gordas, da vizinhança, diziam do guri: “Bonito como uma estampa.” Outras gemiam: “Ai que vontade de morder, de apertar, meu Deus!” Para os pais, aquela criança era tudo. Não faziam outra coisa, na vida, senão adorá-la. E no seu fanatismo, exageravam: não iam ao cinema, não saíam quase, para não
se afastar do Euzebiozinho. O próprio Hermes, que não gostava de criança, foi obrigado a admitir que esta era uma imagem inesquecível. Enfim, depois de fazer festas no Euzebiozinho, o visitante sentou-se à mesa, com o casal. A dona da casa, na cabeceira, fez-lhe a pergunta: — Gosta de maionese?
Hermes, já íntimo, exclamou, alegremente:
— Eu topo tudo!
E Durval, no mesmo diapasão:
— Vamos tacar peito, minha gente! Estou mortinho de fome!
Foi uma pequena reunião, a três, realmente adorável. A simpatia entre Hermes e Clarita surgiu recíproca e instantânea. O marido, radiante, cutucava o amigo:
— Fez fé com tua cara!
E, então, sensibilizado, o Hermes teve uma franqueza inesperada e
agradabilíssima:
— A senhora é muito melhor que no retrato! — e insistiu: — Não há comparação!
Durval fez a blague:
— Olha que eu fico com ciúmes.
Riram os três. Hermes ainda fez mágicas com um baralho, que Clarita lhe
arranjou. Tinha uma agilidade de prestidigitador profissional. No fim, passada meia-noite, Clarita ralhou com ele:
— Vamos parar com esse negócio de me chamar de senhora! Não gosto disso!
E Durval:
— Evidente! Você é íntimo, Hermes! Você é de casa, ora, bolas!
O Inevitável
Então, o Hermes, que não tinha família no Rio, passou a frequentar aquela casa todos os dias. O casal vivia em cima: “Até amanhã, hein?” E para que ele não tivesse escrúpulos, diziam-lhe: “Nós não saímos nunca, por causa do garoto.” Foi uma convivência deliciosa e perturbadora. O simples fato de chamá-la de “você”, em vez de senhora, o comovia. Ele saía, de lá, furioso: “Sou uma besta.” No quarto, antes de dormir, dizia, a meia voz, para si mesmo: “Linda.” E voltava sempre. Aquela pequena, que era um conhecimento de dias, já se convertera na sua ideia fixa. Só pensava nela e já não era possível a menor dúvida: estava apaixonado, como se fosse um menino, um colegial, um idiota muito grande e irremediável. A princípio
resolvera esconder este sentimento, sobretudo da principal interessada. Mas a intimidade que se criou entre eles era um estímulo, um apelo constante, uma cotidiana sugestão. E o que aconteceu, finalmente, era mais que previsível. Um dia, ele chegou antes do marido e teve um choque quando percebeu que o outro não estava. Clarita andava às voltas com um vidrinho de elixir paregórico, contando gotas. E assim que o viu teve um lamento:
— Estou tão amolada! Você nem faz uma ideia!
E contou: o filho não estava passando nada bem; amanhecera com dor de
barriguinha, coitado! Hermes fez o comentário convencional:
— Que caso sério!
Estava muito pálido e trêmulo: e não por causa do menino, evidentemente. Já não gostava do Euzebiozinho, como não gostaria de ninguém que se colocasse entre ele e Clarita. E o filho era a obsessão, a loucura da moça. Sem uma palavra, ele a deixou dar remédio ao filho. Mas já decidira. Quando Clarita voltou, ainda preocupada, ele fez a pergunta, em voz baixa, sem desfitá-la:
— Posso te dizer uma coisa?
— Diz.
E ele:
— Sabe que eu gosto de ti? Que estou apaixonado por ti?
— Nem brinca!
Hermes insistiu, com o lábio trêmulo:
— Sério! Te dou a minha palavra de honra!
Era uma situação crítica que a jovem mãe e esposa contornou com muito tato e desenvoltura:
— Não acredito, não pode ser. Eu sei que você está brincando. E com licença, sim, Hermes? Eu vou lá dentro ver meu filho. Volto já.
Realmente, foi. E não voltou. Ou, por outra, só voltou quando o marido entrou em casa. Jantaram juntos, como sempre. Uma observação humilhou e desorientou Hermes: Clarita estava natural, calma, segura de si, como se não tivesse havido nada. Amargurado, o rapaz parecia distraído e triste. Durval acabou reparando: e, satisfeito da vida, fez a primeira pilhéria que lhe ocorreu:
— No mínimo estás com algum amor infeliz.
A Ideia
Passou. Hermes não tocou mais no assunto. Seu primeiro impulso foi não voltar mais, nunca mais. Mas aquela casa era sua doença. Morreria de tédio, de aborrecimento, de nostalgia, se deixasse de ver aquela mulher. Diante dela, passou a ter uma nova atitude, não de alegre e íntima confiança, mas de humildade. No primeiro ensejo, balbuciou: “Desculpe, sim?” E a cortejava agora da maneira mais indireta possível: através do filho. Tomara-se de amores pela criança: trazia-lhe mimos, chicletes, balas de figurinhas. No seu incondicionalismo, ia mais longe: deixava-se montar por Euzebiozinho, era cavalgado por ele, em plena sala. De vez em quando, pedia:
— Deixa eu dar uma volta com o guri?
Saía com ele. Levava-o a passear, num jardim próximo, e para conquistá-lo,
pagava para a criança passeios em charretes puxadas por bodes. Por outro lado, andou tendo encontros com Durval, na cidade, a pretexto de confidência. Contou que estava com um “caso tenebroso”. E sussurrou:
— Uma cara casada.
Durval perguntou:
— Boa?
Estalou a língua:
— Um rabinho que é um sonho.
Durval foi para casa, contar a “paixão” do Hermes. Continuaram as confidências. Durval, interessadíssimo, queria saber se a fulana “topava” ou não. O outro baixa a voz, misterioso: “Tenho uma ideia infalível, luminosa.” E prometia: “Depois te conto.” Há meses que, em segredo, ele cultivava a “ideia” e a aperfeiçoava.
Até que chegou o grande dia. Pediu para dar uma voltinha com Euzebiozinho. Uma hora depois, batia o telefone e Clarita atendeu. Era o Hermes:
— Estou com o teu filho num lugar assim, assim. Ou você vem buscá-lo,
sozinha, sem dizer nada à polícia, ou ele morre. Mas olha: sozinha, ouviste? Sem teu marido. Estou da janela espiando e mato mesmo! Mato tranquilamente!
A Decisão
Clarita ficou como louca. Felizmente, o marido ia entrando e, quando soube, foi outro alucinado. Súbito, compreendia tudo, compreendia que a tal mulher casada era a dele. Clarita, frenética, já via o filho morto, talvez estrangulado, como o baby Lindenberg. Quando o marido falou em polícia, ela berrou:
— Está maluco? Está doido?
De novo, o telefone; e a pergunta: “Vem ou não vem? Olha que eu mato!”
Durval apanhou o fone. Fez súplica, chorou. O outro sereno, irredutível, dizia apenas: “Manda a tua mulher. E já!” Durval ainda quis convencê-lo, mas sentiu que não há nenhum raciocínio possível contra uma paixão. E Hermes:
— Teu filho está aqui, comigo. E não sabe que vai morrer. Tua mulher vem ou não vem? Mas sozinha, ouviste, sozinha!
Durval percebeu que o outro estava louco. E, sobretudo, quando prometeu:
“Ninguém saberá, nunca, porque, te juro, que, depois, meto uma bala na cabeça.”
Clarita, do lado, chorando, perguntou:
— E então?
O marido arriou numa poltrona. Disse, apenas:
— Vai.
Nelson Rodrigues – 1912/1980.