
No antigo edifício onde passei minha infância, havia um sistema de lixeiras que eu nunca mais vi em nenhuma construção contemporânea. Na parte da área de serviço, havia uma porta de metal que abria de um jeito que, para uma mente infantil, lembrava o movimento das pontes levadiças de um castelo medieval (imagino que o cheiro, provavelmente, deveria ser parecido, a julgar pelo que estudei anos mais tarde). Nem é preciso dizer que ela, de início, quase tomou parte nas brincadeiras com os bonecos dos heróis do momento, movimento sustado pela elasticidade pedagógica das legítimas sandálias de borracha, acompanhadas de certas admoestações sobre a salubridade.
Mas, para o que realmente importa nessa história, é preciso acrescentar que esse sistema era composto de uma torre totalmente fechada, com as já referidas aberturas em cada apartamento e o resto a gravidade se encarregava de fazer, despejando as sacolas de lixo em grandes latões (aqueles que nos filmes parecem ter trazido petróleo de terras longínquas), perfeitamente alinhados na parte térrea e que ficavam trancados em uma área sombria, fechada por uma grade de ferro que, voltando às imagens do imaginário infantil, parecia uma mistura de masmorra, calabouço e latrina.
As portas só se abriam quando o zelador levava os latões para o lado de fora do prédio e era hipnótico o modo como ele, e depois os próprios operários da limpeza urbana, os rolavam inclinados de modo a fazer valer todas as propriedades do movimento da física newtoniana. Era nesse momento que conseguíamos aproveitar e olhar mais de perto o interior daquele lugar obscuro. Foi quando cismamos que ali, exatamente ali, abria-se um portal para um outro mundo. Não me lembro que outro mundo era esse e menos ainda a razão que nos levou a crer que esse lugar tão malcheiroso pudesse conectar outras dimensões no espaço/tempo.
Foi numa desses momentos de experimentação quântica (muito antes dos nossos sucessores criarem o Grande Colisor de Hádrons) que conhecemos o nosso novo vizinho. Havia dito que chegara naquele mesmo dia e que estava ansioso para saber tudo sobre o prédio, o bairro e como eram as coisas por ali. Apesar de acharmos meio estranho, passamos rapidamente as informações fundamentais e passamos a nos concentrar novamente nas nossas teorias cósmico-sanitárias.
De repente, para a nossa surpresa, o nosso novo colega se ofereceu para confirmar as nossas especulações. Disse que entraria lá e que, assim que o fizesse, nós deveríamos fechar o portão e o cadeado, que pendia aberto, e nos afastarmos dali até que não conseguíssemos ver nitidamente o interior. Com cada etapa realizada com cuidado e rapidez, o máximo que conseguimos foi uma bronca colossal do zelador por termos fechado a lixeira com o molho de chaves que a abria, pendendo do lado de dentro. Simples! Dissemos. Basta pedir ao nosso amigo que ainda estaria ali.
Foi quando a ira do zelador alcançou igualmente medidas astronômicas. Pensou que estivéssemos, além da traquinagem, de deboche. Não havia ninguém lá dentro, segundo ele. Insistimos e, naquela hora, começamos a ficar seriamente preocupados. Teria ele escalado a torre e entrado no apartamento? Seria uma escalada nojenta, porém, fazia sentido. Enviamos nossos batedores para verificação enquanto o zelador tentava encontrar a chave reserva. Nada. Nem sinal do nosso novo amigo.
No fim, o síndico do prédio, que era gente boníssima, veio conversar conosco sobre o nosso comportamento, sobre os limites das brincadeiras e tal. Concordamos em tudo, pedimos desculpas, mas apenas insistimos em saber alguma notícia sobre o nosso novo vizinho desaparecido.
Novo vizinho? Perguntou o síndico, com ar de quem imaginava estar em mais uma das nossas.
– Olha, pessoal, ninguém se mudou para cá esse ano ainda. Tomem juízo!
Impressionados, até hoje não conseguimos descobrir se o síndico mentira, se o tal garoto se infiltrou da rua ou se realmente aquela lixeira transcendental abriu, como imaginávamos, o tal portal. O prédio ainda está no mesmo local para quem quiser investigar. Eu, por via das dúvidas, achei melhor nunca mais voltar lá.
Paulo Cotias é psicanalista, professor, historiador e escritor. Confira outros conteúdos no @opaulocotias nas redes (YouTube, X, Instagram e Facebook) e na página www.psicotias.com