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Crônica / Conto

O JUIZ LADRÃO

Nelson Rodrigues – 1912/1980 (*)

De vez em quando, eu esbarro num saudosista. É um sujeito
esplêndido, que vive enfiado no passado. Direi mais: — vive feliz e
realizado no passado como um peixinho num aquário de sala de
visitas. E convenhamos que isto é bonito, é lindo. Outro dia, um
deles atracou-se comigo no meio da rua; arrastou-me para o fundo
de um café, e, lá, com o olho rútilo e o lábio trêmulo, pôs-se a falar
de Marcos de Mendonça, o “Fitinha Roxa”; da “espanhola”; do
assassinato de Pinheiro Machado e do campeonato que o Botafogo
tirou em 1910. Mas, nos vinte minutos da conversa retrospectiva, já
lhe pendia do beiço uma grossa, uma espuma bovina, uma baba
elástica. De mim para mim, compreendi essa nostalgia, louvei essa
fidelidade ao passado. Amigos, eis uma verdade eterna: — o passado
sempre tem razão.
Por exemplo: — o futebol antigo. Era, a meu ver, um fenômeno
vital muito mais rico, complexo e intrincado. Hoje, os jogadores, os
juízes e os bandeirinhas se parecem entre si como soldadinhos de
chumbo. Não encontramos, em ninguém, uma dessemelhança forte, crespa e taxativa. Não há um craque, um árbitro ou um bandeirinha
que se imponha como um símbolo humano definitivo. Outrora havia
o “juiz ladrão”. E hoje? Hoje, os juízes são de uma chata, monótona e
alvar honestidade. Abrahão Lincoln não seria mais íntegro do que
Mário Vianna. E vamos e venhamos: — a virtude pode ser muito
bonita, mas exala um tédio homicida e, além disso, causa as úlceras
imortais. Não acredito em honestidade sem acidez, sem dieta e sem
úlcera. Mas ponha-se um árbitro insubornável diante de um vigarista.
E verificaremos isto: — falta ao virtuoso a feérica, a irisada, a
multicolorida variedade do vigarista. O profissionalismo torna
inexequível o juiz ladrão. E é pena. Porque seu desaparecimento é
um desfalque lírico, um desfalque dramático para os jogos modernos.

Vejam vocês que coisa melancólica e deprimente: — um jogo de
futebol tem 22 homens. Com o juiz e os bandeirinhas, 25.
Acrescentem-se os gandulas e já teremos um total de 29. Vinte e
nove homens e nem um único e escasso canalha, nem um único e
escasso vigarista! Eis a verdade, que levaria um Balzac ao desespero
e à úlcera: — as condições do futebol contemporâneo tornam
impraticável a existência do canalha. Ou por outra: — o canalha
pode existir, mas contido, frustrado, inédito, sem função e sem
destino.

Mas em 1918, 17 ou 16, os gatunos constituíam uma briosa
fauna, uma luxuriante flora. Evidentemente, havia as exceções. Mas
os salafrários podiam apitar as partidas e com que glorioso, com que
genial descaro! Certa vez, foi até interessante: — existia um juiz que
era um canalha em estado de pureza, de graça, de autenticidade. Um
domingo, ele vai apitar um jogo decisivo. Que fazem os adversários?
Tentam suborná-lo. Ora, o canalha é sempre um cordial, um ameno,
um amorável. E o homem optou pela solução mais equânime: —
levou bola dos dois lados. Justiça se lhe faça: — roubou da maneira
mais desenfreada e imparcial os dois quadros. Ao soar o apito final,
os 22 jogadores partiram para cima do ladrão. Mas o gângster já se
antecipara, já estava pulando muros e galinheiros. Era uma
figurinha elástica, acrobática e alada. Isto foi em 1917. O juiz gatuno
está correndo até hoje.

(*) Manchete Esportiva, 31/12/1955.

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