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Crônica/Conto/Poesia

O PORTEIRO

Paulo Cotias (*)

Existem pessoas que passam pela nossa vida e cuja importância só se consegue compreender muito tempo mais tarde. Assim foi com o Seu Zé. Era um tempo no qual os edifícios ainda se contentavam com poucos e sólidos andares, muros baixos e bem distribuídos, longe do aspecto tenebroso da atualidade, com suas grades, gaiolas, arames farpados e cercas elétricas. Seu Zé, mais conhecido carinhosamente no bairro como Zé Pescocinho, era o seu guardião fiel.

Na parte detrás do pátio, depois do segundo bloco gêmeo e já esgotado o espaço dos carros que disputavam com as pilastras um espaço de descanso, ficava a casa onde Seu Zé morava com a sua sempre sorridente esposa. De ofício, era um misto de cuidador e zelador, mas sua função primordial era a de porteiro do prédio.

Para tal, em seu turno, vinha de sua casa sempre aprumado. Banho tomado, colônia e loção evidentes, o ralo cabelo sempre bem penteado e constantemente reposicionado graças a um pente de osso que trazia no bolso do uniforme azul, com a calça de tergal em um azul mais profundo. Cordão de ouro, que fazia par com um dente de também revestido de ouro, sempre exibido no sorriso fácil.

Completava o homem o seu sapato social e o valioso relógio Seiko de fundo esmeralda. Trazia consigo um pesado molho de chaves. Sabíamos da sua presença ou da sua circulação pelo som que fazia e sempre nos despertou a curiosidade infantil o que tantas chaves poderiam revelar naquele espaço que esquadrinhávamos nas nossas brincadeiras.

Naquele tempo a legislação ainda não havia ainda concedido a dignidade merecida do local reservado ao porteiro. O posto de trabalho do Seu Zé era uma cadeira de couro preta e acolchoada, que respeitávamos com solenidade, deixando-a a salvo das nossas agitações. Era a cadeira do Seu Zé. Nela, nem ousávamos sentar. Ele era muito querido por todos nós.

O que não percebíamos ainda, era que Seu Zé, além de zelar pelo prédio, zelava especialmente por nós. Todos os mais velhos quando saíam pediam ao Seu Zé que desse uma “olhadinha” em nós se possível, já que, como dito, as fronteiras entre a rua e o pátio eram quase inexistentes. Seria facílimo sairmos e igualmente fácil alguém entrar. E, desde aquele tempo, a maldade passeava livremente. No entanto, me recordo ainda hoje da sua frase, “não se preocupe, tá com Seu Zé, tá com Deus”. Por essas e outras que se autoproclamava, com justiça, como o “amigo das crianças”.

Se divertia conosco, nos educava, ralhava e nos guardava dos perigos que sequer percebíamos. Cuidou para que tivéssemos uma infância, coisa provavelmente negada a ele, nordestino retirante. Um dia soubemos que ele ia embora. Não me recordo se estava adoentado ou apenas queria passar o restante do seu tempo de volta a sua terra, parentes, raízes.

Lembro de termos chorado ou talvez seja uma memória enxertada que deveria ter existido. Não deve mais estar vivo, já que se foram quatro décadas daquele tempo. Talvez ainda o vejamos na eternidade, talvez esteja um dia nos esperando com seu farto molho de chaves, para tomar conta novamente das suas crianças.

Paulo Cotias é psicanalista e escritor. Visite o site www.psicotias.com e acompanhe os conteúdos do Canal Psicotias no YouTube, Facebook, Instagram e X (Twitter).

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