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Crônica / Conto

SEJA VOCÊ MESMO!

Paulo Cotias (*)

Todo o mundo que o conhecia sabia da sua perspicácia e o admirava por isso. Em função da sua personalidade que oscilava convenientemente entre o reservado e o expansivo, não era difícil ser taxado de gente boa pelas pessoas com quem topava, uma vez que cumprimentava a todos com tranquilidade, um sorriso agradável e um trato fino. Entrava e saia de onde quisesse e não era nenhum sacrifício, bastava ser ele mesmo. Porém, quando era chamado a falar as coisas mudavam. A eloquência era tamanha, que parecia uma outra pessoa que ali estava. E isso também lhe concedia pontos no escore do encantamento. Naquele dia, em especial, viajara a trabalho para sua cidade natal e, quando isso acontecia, era importante usar um pouco do tempo livre para matar a saudade das antigas amizades. E como esse tempo era realmente escasso, o escolhido foi o mais antigo amigo de infância.

Sendo assim, marcaram a solene reunião com estilo, no mais tradicional restaurante da cidade. Chegando os dois no horário marcado, cumprimentou o velho amigo e percebeu que um olhar aflito lhe era dirigido de dentro do restaurante. Não tardou e o maître puxou o gerente pelo braço e vieram os dois a galope para a entrada, buscando o rapaz com toda a cerimônia e, por conseguinte, ao amigo admirado pelo reconhecimento tão efusivo.  Antes de iniciar o serviço, o maître e o gerente fizeram questão de levar o rapaz e, claro, seu amigo, para conhecer todas as dependências do restaurante. Passearam pelos diferentes salões recebendo uma aula minuciosa a respeito da decoração, das tradições, do que era servido em cada recinto e quem por lá já tinha passado e emprestado (pelo visto assim como ele) um pouco do seu brilho ao local. Apertou a mão do chefe de cozinha e de toda a sua equipe, que se perfilou rapidamente para uma rápida saudação.

Por fim, sentaram à mesa. E não lhes foi fornecido cardápio. O gerente providenciou que fosse feito o serviço completo, com a entrada, prato principal, sobremesa, vinho e entre uma etapa e outra, alguns acepipes especiais e degustação de licores finos. O amigo mal podia acreditar. A conversa não conseguia fluir, tamanho zelo na frequência à mesa. Comeu e bebeu num misto de estupefação e deleite. Por fim, o rapaz pediu a conta. E isso quase foi tomado como ofensa. O maître e o gerente deram a impressão de se perguntar mentalmente se fizeram algo de errado já que tudo aquilo era uma demonstração de cortesia e deferência. Ao perceber, o rapaz apenas aquiesceu e, sorridente, agradeceu por tudo, desmanchou-se em elogios e, assim, saiu junto ao amigo e escudeiro.

Na saída, o amigo não resistiu em perguntar sobre que raios acontecera naquela noite. Como o rapaz havia se tornado tão importante e merecedor de tamanha demonstração de afeto!  De fato, respondeu o rapaz ao melhor amigo, me deu uma enorme alegria em poder proporcionar aos dois a oportunidade de desfrutar da vaidade de receber uma pessoa importante no seu estabelecimento. E fico mais feliz ainda, acrescentou, de estender essa alegria e o proveito de uma noite inesquecível a um amigo tão querido dos tempos de infância.

Agora, só me faça uma única gentileza, disse o rapaz ao amigo, suba logo nesse ônibus por que a hora que esses caras perceberem que eu não faço a menor ideia de quem eles sejam e de que eu não sou quem eles pensam, a coisa vai ficar bem feia para nós dois.

(*) Paulo Cotias é psicanalista e escritor. Visite www.psicotias.com e inscreva-se no canal Psicotias no YouTube para conteúdos exclusivos.   

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