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Crônica / Conto

O SAPATEIRO

Paulo Cotias (*)

O Sapateiro

Antigamente, na minha rua, havia um sapateiro. Aliás, permitam-me melhorar a descrição. Era uma sapataria completa, porém, de propriedade de um sapateiro italiano. Por isso, não era dessas sapatarias atuais que apenas vendem sapatos ou como os variados marketplaces virtuais. Ali, você encontrava uma atmosfera diferente, como se escolher sapatos fosse uma espécie de arte. Havia os modismos é claro, com as últimas novidades temáticas, os pares que tinham a marca dos artistas do momento ou que a propaganda de massa tenha conseguido nos convencer sobre o seu produto representar mais do que um calçado para os pés, mas sim, um estilo de vida. Contudo, também era um tempo no qual os valores da estética ainda perdiam para outros requisitos mais apropriados ao mundo dos sapatos. Por isso, era importante que os cartazes ou mesmo a descrição dos fabricantes, proporcionassem ao vendedor os argumentos necessários ao convencimento sobre a durabilidade e o conforto e o restante se comprovava na prática.

Toda a vez que eu entrava lá me encantava com aquela atmosfera, meio loja, meio oficina. E era assim mesmo que a experiência de adentrar ao recinto se fazia acontecer. Primeiro as vitrines, exigência da modernidade. Mas, conforme você avançava, um cheiro denso, solene e começava a paisagem das caixas empilhadas, as prateleiras de madeira maciça que iam até o teto, cheia de outras tantas caixas, uma velha e rabugenta escada de madeira e, na fronteira entre a venda e a arte, o balcão. Nele começavam a surgir algumas traquitanas que só se viam antigamente. Um alargador de sapatos, diferencial caso algum freguês ou freguesa pedisse para tornar o couro mais gentil, uma caixa registradora austera e, na parte de baixo, por trás de uma fina vidraça, os produtos que toda pessoa com sapatos felizes deveria ter: escovas, pastas, graxas, panos e por aí vai.

Por detrás do balcão, uma pequena passagem escondia o cômodo da oficina. Jamais pude entrar lá, mas sempre espiava, cada vez com mais detalhes, aquilo que parecia um estúdio de alquimista. Do chão ao teto, pendiam cadarços de todas as cores, tiras de couro, solados de borracha, pedaços de tecido. Tornos, lixas, frascos de cola, prensas. Ali um sapato ganhava uma nova chance. Hoje, nossa cultura mercantil é implacável: descartamos um calçado ao menor sinal de desgaste ou defeito. Mas naquele tempo, um sapato surrado voltava à vida, garboso e reluzente, como que agradecido por continuar a servir aos nossos pés. Tudo isso pelas mãos do artesão.

O velho italiano, de sotaque marcante, que também herdou provavelmente tantas histórias e tinha no fundo da loja um oratório de São Francisco de Assis, era uma lição viva de que a existência é realmente ambígua. Ora devemos, querendo ou não, nos despedir do que fez parte da nossa caminhada e abraçarmos o novo, ora usar do discernimento de que as vezes as coisas só precisam de reparos cuidadosos para voltarem a ser tão boas como sempre foram. É assim para os sapatos e também para as pessoas.

(*) Prof. Paulo Cotias é psicanalista e escritor. Visite o site: www.psicotias.com

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