Reinaldo Azevedo
Que coisa, não é?
O ministro Alexandre de Moraes, do STF, segue na mira da extrema direita. Uma tal Marina Helena, por exemplo, candidata do Novo à Prefeitura de São Paulo, participa de um debate e diz que o impeachment de Moraes é a coisa mais importante do Brasil, a exemplo do que fez no do UOL/RedeTV. Até aí, vá lá… A gente sabe o que esperar dessa turma. Não decepciona nem surpreende. Curioso, aí sim, é que “analistas” ditos liberais também tenham escolhido o ministro como inimigo da República…
E o que foi que ele fez mesmo? Bem, teve e tem tido a coragem de aplicar a lei, seja no comando do TSE, seja na relatoria de inquéritos. Há uma espécie de mantra, muito simples, que esclarece boa parte de suas decisões: “O que é crime fora da rede também é crime na rede”. E isso pode causar muita indignação. Mais: sempre nos limites da lei, Moraes não permite que bandidos utilizem os instrumentos da democracia para fraudar a própria democracia.
A delinquência analítica que o acusa de aplicar censura prévia quando derruba páginas de criminosos contumazes, por exemplo, finge ignorar o funcionamento da indústria de “fake news” e de ataque às instituições. Não se trata de uma produção artesanal. Há verdadeiras organizações criminosas articuladas com esse fim.
Retirar uma página no ar por reiterada veiculação de “fake news” corresponde a fechar um desmanche clandestino de carros ou uma central para dar golpes bancários via Internet. O que os críticos de Moraes gostariam que se fizesse em casos assim? Punir-se-iam os responsáveis pelo desmanche ou pela central a cada caso denunciado, mas sem interferir no seu regular funcionamento? E, no caso, funcionariam para quê? Ora, para praticar novos crimes.
O show de horrores a que se assiste na disputa eleitoral de São Paulo — e parece que poucos se dão conta disto — também é fruto do laxismo na aplicação da lei. Estamos constatando, à luz do dia e em cena aberta, o que pode acontecer numa disputa sem regras — ou pior: as regras objetivamente existem, mas há pouca disposição subjetiva — dos sujeitos — para aplicá-las.
Sem a força coativa da lei, as coisas se complicam. E isso só demonstra a importância da atuação de Moraes — e, mais amplamente, do TSE — em favor da lisura no pleito de 2022. É compreensível que os bolsonaristas e a extrema direita cultivem um ódio tão dedicado e fanático ao ministro. Em larga medida, ele responde pela lisura da eleição porque não permitiu — ou a mitigou no limite do possível — que a pistolagem tomasse o lugar da vontade do eleitor. Não espero que mereça o apreço de bandidos. Infelizmente, há os que, não sendo bandidos, deixaram-se capturar pela “banditização” do pensamento.
Por que Pablo Marçal (PRTB) faz o que faz na campanha eleitoral e nos debates em São Paulo? Porque age na certeza de que nada vai lhe acontecer, de que a legislação é frouxa o suficiente para permitir uma interpretação relaxada e de que eventuais sanções serão pouco gravosas. E pronto! A patuscada está contratada.
Os tempos, convenham, já não ajudam. Os “clowns” sempre apareceram nas disputas. Mas, como é evidente, na era pré-redes, não tinham como ir muito longe — não, ao menos, na disputa por um cargo no Executivo. Hoje em dia, um malandro pode saltar das redes para a cabeça nas pesquisas de intenção de votos num piscar de olhos. E, não raro, o que ele tem a oferecer? Resposta a problemas? Propostas inovadoras? Um entendimento original do mundo? Nada! Bastam discurso de ódio e ataque às instituições, apresentando-se como uma novidade que vai mudar “tudo isso que está aí”.
É possível, vamos ver, que Marçal não vá para o segundo turno na maior cidade do país. Isso não quer dizer que as instituições e mesmo a imprensa fizeram o que estava a seu alcance para impedir que personagem assim prosperasse. Ademais, sua participação em eleições não é inócua. A contribuição deste senhor ao rebaixamento do debate público é enorme. E, como já experimentamos na pele, os “palhaços macabros” podem, sim, vencer eleições. O custo é gigantesco.
E não aposte que isso vai passar. Iremos deste ponto para pior. As redes continuarão a vomitar essas personagens tóxicas no processo político. “Mas, afinal, se já ganham tanto dinheiro enganando otários, por que anseiam o poder do Estado?” Porque ali está a fonte da norma. Mais do que a democracia, o que está sob ameaça é a própria concepção republicana de sociedade, daí que um criminoso global como Elon Musk se atreva a se lançar em campanhas contra governos, contra o Poder Judiciário de países, contra qualquer força que imponha algum limite a seus interesses.
Moraes não trava uma luta contra o bolsonarismo ou contra o X, de Musk. Trata-se de fazer valer uma concepção republicana de poder, em oposição aos que entendem a sociedade como um aglomerado de seres voluntariosos, de modo a que triunfe a vontade daqueles que se mostrarem mais fortes ou mais aptos no jogo do vale-tudo.
Nessa perspectiva, não há nada de engraçado, jocoso ou irrelevante num Pablo Marçal. Ele é uma figura deste tempo. Consegue ler com rara habilidade as fragilidades do sistema que deveria pôr limites a seus apetites e a seus atos delinquentes. E isso inclui, sim, a imprensa.
Essas personagens se fazem nas redes, mas contam com a nossa colaboração para normalizá-los. Nota à margem: a ideia de que poderiam ser devolvidas à irrelevância por reportagens esclarecedoras sobre seus malfeitos ficou para trás. Coisa dos tempos pré-Internet. Vejam o que se deu com Donald Trump nos EUA ou com Jair Bolsonaro no Brasil. A extrema direita, habilmente, soube demonizar a própria imprensa, de modo que uma reportagem-denúncia contribui pode fortalecer os vínculos dos “palhaços macabros” com os seus fanáticos, em vez de fazer o contrário.
Há leis para conter elementos como Marçal. A questão é saber por que não são aplicadas.
Quanto ao jornalismo, renovo o meu convite à reflexão. Pertencemos, em essência, a um sistema que garante direitos individuais e públicos e que não faculta a ninguém a licença para solapar justamente os fundamentos que asseguram a nossa existência.
A normalização de Marçais e Bolsonaros estabelece um diálogo com a destruição do próprio regime de liberdades, que é nossa razão de ser.
Faz sentido?
Cria corvos, e eles te arrancarão os olhos!
- Colunista UOL.