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Crônica/Conto/Poesia

UMA MENINA LEVADA

Sim, Aída fora uma moça levadíssima. Ela própria, andando de braço, com ele,pela calçada, confessava:
— Eu não era sopa! Fiz misérias!
— E agora?
— Agora, não, claro! Agora é diferente! Agora, eu tenho você, gosto de você. Mas antes, ninguém podia comigo!
E no tom, na inflexão com que dizia isso e em toda a sua atitude havia uma espécie de vaidade retrospectiva, como se a memória de não sei que loucuras passadas, ainda a comovesse. Fizera para o namorado um levantamento completode todos os seus namoros, flertes, leviandades, como se ele fosse um confessor profissional. E Carlos atraí-do, fascinado, exigia que ela esmiuçasse cada caso, fazia questão do detalhe ínfimo e inconfessável. A princípio, Aída teve escrúpulo de contar certas passagens, mas, pouco a pouco, vencida pela insistência do outro e cedendo ao próprio prazer evocativo, foi de uma sinceridade minuciosa e implacável. Um dia, chegou mais longe: surpreendeu-se a mentir, a inventar episódios, incidentes, atitudes. Ele, quieto, num assombro mudo, dizia, por vezes:
— Como pode! Como pode!

A Dúvida

Havia nas confissões de Aída, dois aspectos: por um lado, o deslumbrava pela sinceridade total; por outro, o aterrava, sugerindo todas as dúvidas possíveis e imagináveis. Ele a defendia, em todos os lugares, inclusive na própria casa; mas, no mais íntimo de si mesmo, tinha medo ou, por outra, começava a ter medo. Imagine se ela, depois do casamento… A mãe, d. Isaura, o esperava, todas as noites, com uma novidade amarga:
— Soube mais uma da tua pequena. Uma notável! Imagine que ela também
namorou, sabe quem?
E, na sua fúria, na sua tenacidade de mulher que odeia outra mulher, contava mais um caso que era, a um só tempo, grotesco e abjeto. Em suma: ela fora vista,com o senhorio, de automóvel, na estrada da Tijuca. O senhorio! Devia ter três ou quatro meses de aluguel e liquidaria a dívida assim, com favores dessa natureza. E a grande verdade era a seguinte: desde então, a família da moça não pagava mais aluguel, morava de graça! D. Isaura punha as mãos na cabeça:

— É possível? Responda! É possível?

Fazia paralelos entre Aída e uma série de “meninas direitas”, que ele conhecia ou conhecera. Citava, sobretudo, como exemplo de grande mulher — fiel, abnegada, infalível — uma vaga, uma fabulosa prima, chamada Suzana. Recontava o caso, pela décima vez: Suzana gostava muito de um rapaz. E, em pleno namoro, o rapaz aparece com umas tantas manifestações, uns tantos sintomas que o levaram ao médico. Constatou-se, então, apenas isto: ele estava morfético! Que fez Suzana?
Correu para desinfetar as mãos, a boca, os cabelos? D. Isaura fazia as perguntas e ela própria respondia, com uma exasperação de fanática:

— Pois sim!

A prima Suzana, assim que soube da notícia, simultaneamente com o parecer médico contrário ao casamento, precipitou-se ao encontro do ser amado. Houve, então, a grande cena: na frente de parentes atônitos, ela o beijara na boca! O episódio ocorrera há uns trinta anos ou mais. Não se casaram, porque o próprio namorado não quis. Mas ela acabou contaminada, também. E a mesma doença os uniu mais, muito mais, do que um simples vínculo matrimonial.

A Moléstia

Tanto tempo depois, d. Isaura interpelava o filho:

— Duvido que Aída fizesse o mesmo por você! Aposto a minha cabeça!
Carlos ouvia, de cabeça baixa, e num interesse imenso. Tudo o que se dissesse sobre a mulher amada, desde o comentário mais trivial até a acusação mais dramática, tinha o dom de comovê-lo. Ia para o quarto, enquanto a mãe, no seu rancor de nervosa, de obcecada, gemia para si mesma: “Ah, meu Deus! Por que esse diabo não, morre?” No quarto, tirando a gravata, desabotoando a camisa, Carlos evocava essa remotíssima e notável prima. Na sua imaginação, criava o quadro: ela e o namorado apodrecendo juntos, numa ternura hedionda. Depois, já deitado, pouco a pouco, ia transferindo o caso para si mesmo: punha-se no lugar do doente e Aída no lugar da prima. Aída seria capaz de beijá-lo, sabendo-o contaminado? Pelo espaço de um mês ou dois, andou com o problema na cabeça. Já era uma ideia fixa. Até que, uma noite, não resistiu. Com um ob jetivo secreto, começou a fazer umasérie de perguntas a Aída:

— Se eu ficasse doente, muito doente, se eu apanhasse por exemplo, uma
tuberculose? Ela reclamou:
— Ih, meu filho! Você hoje está fúnebre! Isola!
Com doçura, insistiu:
— Façamos de conta que eu ficasse doente do peito. Você brigaria comigo?
— Quanta bobagem!
— Isso não é resposta. Você me beijaria na boca, hein?
Aída teve um desabafo:
— Beijaria, sim, pronto, acabou-se! Mas vamos mudar de assunto, que esse não interessa.
Durante 15 dias, só falaram de coisas triviais. De vez em quando, alguém
sugeria: “Larga essa pequena! Dá o fora, rapaz!” Ele, intimamente, sabia que o abandono era impossível. Todo homem nasce condenado a uma mulher, única e insubstituível; a dele era Aída. Felizmente, tudo ia muito bem e a confiança entre os dois, recíproca e perfeita. Numa atitude de admirável lealdade, ela acabara de fazer aconfissão extrema: de que, há tempos, dera um mal passo. Carlos adorou esta sinceridade e beijou, uma após outra, as mãos da pequena, como se a venerasse. Ela, na vaidade da própria franqueza, insistiu:

— Eu não tapeio ninguém! Comigo é pão, pão, queijo, queijo! Sou assim!
Enfim, cada vez mais seguro do próprio e do amor de Aída, resolveu fazer a grande experiência com a namorada. Foi mais cedo, nesse dia, e conversando, de braço dado, ele a levou para o jardim. Sentaram-se num banco. Carlos simulava tristeza. Por sua vez, Aída parecia, senão triste, pelo menos diferente. Bocejava de vez em quando. Então Carlos começou dizendo que, naquele dia, estava meioadoentado. Novo bocejo de Aída, com a observação lacônica:

— Gripe.

A Prova de Amor

Foi a trivialidade da doença, que a pequena lhe atribuía, que o decidiu. O fato é que, com um certo senso de teatro, ele disse:

— Você vai ver o que nunca viu. Olha só, olha!

Tirou um cigarro da carteira e o acendeu; tragou duas ou três vezes. Já atraída, interessada, Aída acompanhava cada movimento do rapaz. Ele, como um prestidigitador na iminência da prova, mostra o cigarro. E, então, ante o espanto da outra, encostou a ponta acesa na palma da própria mão. Fora de si, Aída gritou que parasse e perguntou se estava louco. O rapaz atirou o cigarro fora e tomou entre as suas as mãos da pequena:

— Eu não senti nada, absolutamente nada, nenhuma sensação, compreendeu? E sabe por quê? Porque tenho uma doença mil vezes pior que a tuberculose.

A princípio, Aída não compreendeu. Perguntou:

— Que doença? Que espécie de doença? Será que…?

Ergueu-se, lentamente. Havia, dentro dela, uma suspeita que não tardou a se fundir em certeza. E ele, no escrúpulo do nome desagradável e mais popular, usou a expressão “lázaro” e se apresentou, franca e decisivamente, como “lázaro”. Ao mesmo tempo, agarrou-a pelos dois braços, pediu “o beijo na boca”. Ela deu doisgritos:

— Me solte! Me largue!

Desprendeu-se violentamente e correu. Ele foi no seu encalço como louco,
dizendo que voltasse, que era mentira, brincadeira. Ela, porém, não o escutava, numa revolta de todo o seu ser. Parou, adiante, passou as costas das mãos nos lábios, como se os limpasse dos beijos recebidos. Foi alcançada, subjugada. Mas fugia, com o rosto, da boca obstinada, demente, que perseguia a sua. Dizia, numa obsessão que já era loucura:

— Leproso! Leproso!

Estavam num lugar deserto, ninguém os viu, ninguém a socorreu. Enquanto foi viva, ele não a conseguiu beijar. Carlos, sem saber o que fazia, apertou sou pescoço até que ela não se mexeu mais e ficou muito quieta e largada, os olhos abertos para o céu da tarde. Então, pôde beijá-la muitas vezes.

Nelson Rodrigues – 1912/1980.

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