
O Rio de Janeiro não está “perdendo a guerra” para as facções criminosas. Isso é uma desculpa confortável. O que está acontecendo que parte do Estado fluminense decidiu conviver, negociar e, em certos momentos, proteger estruturas criminosas que se entranharam na política. Quando o Legislativo estadual se torna escudo para interesses que dialogam com facções, milícias e economias ilegais, o problema deixa de ser policial e passa a ser institucional…
De onde não se espera nada é que nada vem mesmo, mas a decisão da assembleia Legislativa de mandar soltar o seu presidente, Rodrigo Bacellar (União Brasil) ontem por estupendos 42 votos a 21, vai nesse sentido.
Sua prisão, sob suspeita de vazar informações para proteger um deputado investigado por tráfico e ligação com o Comando Vermelho, não é um raio em céu azul. É mais um sintoma de um processo longo, no qual organizações criminosas entenderam que fuzil e boca de fumo são instrumentos limitados. O verdadeiro poder está no orçamento público, na caneta, no acesso a informações sigilosas e na capacidade de interferir no funcionamento do Estado.
Quando um parlamento reage a esse tipo de investigação não com autocrítica, mas peitando a Polícia Federal e o STF, o recado é claro: mexer nesse arranjo tem custo político. O discurso de “abuso de autoridade” surge como cortina de fumaça para algo mais simples: a tentativa de manter intocável um ecossistema em que crime e política aprenderam a coexistir. E que envolve um mar de gente com rabo preso, com gente de partidos da direita à esquerda.
Milícias já controlam territórios, serviços básicos, transporte alternativo, gás, internet, venda de imóveis e até decisões eleitorais em bairros inteiros. Facções ampliaram sua atuação para além do varejo da droga, avançando sobre lavagem de dinheiro, venda de combustível adulterado, conluio com fundos de investimento, contratos públicos, relações internacionais. Nada disso acontece sem proteção política. E proteção política não cai do céu: ela passa por gabinetes, emendas, nomeações e votos.
A Alerj, ao longo dos anos, tem sido menos um contraponto a esse avanço e mais um espaço de normalização do absurdo. Deputados acusados de vínculos com o crime seguem legislando, decidindo o futuro do estado, enquanto investigações são tratadas como perseguição. Não é omissão apenas. Em muitos casos, é conivência ativa.
Narcoestado não é quando o tráfico passa a comandar o governo. É quando partes do governo passam a operar em simbiose com o crime, garantindo estabilidade ao negócio ilegal em troca de poder, dinheiro e controle político. O Rio se aproxima perigosamente desse modelo. E não será revertido com mais caveirão ou o empilhamento de corpos de gente pobre, como foi com os 118 da Penha e do Alemão, operação desastrosa que também ceifou a vida de quatro trabalhadores policiais. Mas com o fortalecimento, e não o enfraquecimento, das instituições que ainda ousam investigar.
E o Brasil flertou com isso recentemente, quando a primeira versão do PL Antifacção, relatado pelo deputado Guilherme Derrite (PP-SP), demandava um pedido dos governadores para que a PF pudesse investigar crimes de sua competência nos estados. Ou mesmo com a tentativa de reduzir o orçamento da força policial.
Quando uma Assembleia prefere blindar seus pares a defender a democracia, ela deixa de ser vítima da infiltração criminosa e passa a ser cúmplice. O Rio não precisa apenas de segurança pública. Precisa decidir se ainda quer ser um Estado de direito ou se aceita, em silêncio, a transformação em um balcão de negócios do crime organizado com CNPJ, mandato e foro privilegiado.
Vale lembrar que a promiscuidade entre crime, polícia e política não é nova, mas é exaustivamente discutida na própria Alerj desde a CPI das Milícias, em 2007, presidida pelo então deputado estadual Marcelo Freixo (PT), que também chefiou a CPI do Tráfico de Armas.
Domingos e Chiquinho Brazão, respectivamente, conselheiro do Tribunal de Contas do Rio e deputado federal, foram apontados como mandantes da execução da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes, em março de 2018. Rivaldo Barbosa, então chefe da Polícia Civil, foi o terceiro nome dessa organização criminosa, ajudando a atrapalhar as investigações e proteger os assassinos. Os três vão a julgamento no inicio do ano que vem no STF.
Como já disse aqui, o crime está tão entranhado que demanda uma refundação do Estado do Rio e uma repactuação com a sociedade. A questão é se a cúpula da política e de uma parte rica dessa sociedade, que ganha com a atual situação, vão querer isso de verdade. Pois o problema não fica apenas no controle de territórios por criminosos, extorquindo e matando pobres, mas também está presente na propina paga para que empresas possam burlar a lei, na sonegação que torna alguns ricos ainda mais ricos e na corrupção dos homens e mulheres de bem.
E pelo que vimos até aqui, diante de uma sociedade miliciana no Rio, com o Estado determinando quem vive e quem morre de acordo com interesses pessoais, vale perguntar se, diante do novelo de lã que começa a ser desfiado a partir da prisão de Bacellar, se a banda podre vai topar abrir mão desse poder sem guerra. Ao que tudo indica, não.
Leonardo Sakamoto – UOL