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Crônica/Conto/Poesia

A DESCONHECIDA

Interpelou os companheiros:

— Sou ou não sou bonito?

Um deles, tomando um refrigerante, na própria garrafa, com um canudinho, aventurou:

— Não acho homem bonito. Pra mim, qualquer homem é um bucho.

Acharam graça, riram. Mas Andrezinho, no seu paletó cintado, camisa de um cinza quase roxo, insistia:

— Sou, sim. Sou pintoso. Qualquer mulher gosta de mim.

— Qualquer uma?

Enfiou as duas mãos nos bolsos:

— Qualquer uma.

Então, o Peixoto, que tomava uma média num canto do boteco, ergueu-se de sua mesa. Aproximava-se segurando um pedaço de pão e ainda mastigando. A manteiga
escorria-lhe do lábio como uma baba. Sentou-se perto do Andrezinho. De boca cheia, dizia:

— Vou te provar que és um mascarado. Queres ver?
Recostou-se na cadeira:

— Duvi-d-o-dó.E o outro:

— Ah, duvidas? Pois então escuta e vocês também: eu conheço uma pequena com quem tu não arranjarias tostão. Aposto os tubos!
Andrezinho piscou o olho para os demais. Inclinou-se, gaiato:

— E se eu conquistar?

Se você conquistar, pode me cuspir na cara.

Andrezinho levantou-se. Anunciou:

— Está no papo!

O Bonitão

Perguntava, por toda a parte: “Sou ou não sou bonito?” A princípio, fazia isso por brincadeira. Mas, pouco a pouco, pela repetição, aquilo tornou-se um hábito, um
vício. E acontecia, não raro, uma coisa interessante: apresentado a uma pessoa, emvez de dizer “muito prazer”, perguntava:

— Sou ou não sou bonito?

Já o dominava um desses automatismos irresistíveis. Como fosse realmente bonito e, de resto, simpático, todos achavam graça. Sua sorte no amor era fantástica.

Em casa, o telefone não parava. Eram pequenas, de todos os tipos e classes, que o perseguiam. Dizia-se que até senhoras casadas, muito mais velhas que ele, o adoravam. E o jeito, meio terno, meio infantil, meio voluptuoso, com que ele
exaltava a própria aparência física, era um atrativo a mais.

De resto, com o orgulho de Narciso confesso, Andrezinho implicava, na mesma vaidade, até peças de roupa.
Mostrava meias de um amarelo extravagante, as gravatas ultracoloridas, os sapatos.
E interpelava os conhecidos:

— Que tal? Viste a classe?

— Mais ou menos.

E ele, numa risada:

— Elas não me deixam!

Misteriosa

Até que, numa conversa de café, o Peixoto, que não gostava do Andrezinho, diz que conhecia uma fulana. Andrezinho saltou. Já com seu instinto de sedutor nato em polvorosa, pôs a mão no ombro do outro:

— Pra mim, não existe a mulher inconquistável.

Peixoto, que tinha uma perna mais curta que a outra e era um sujeito taciturno e caladão, teimou: “Pra teu governo, essa cara é. Nem você, nem duzentos como você, arranja nada.” Andrezinho esfregou as mãos, na euforia da conquista que supunha próxima e inevitável.

— Dá nome, endereço, telefone e deixa o resto por minha conta.

Peixoto teve um meio-riso sardônico:

— Pra quê? Dar nome pra quê? Nem adianta.

— Tens medo?

Ergueu-se o outro:

— Não interessa, não interessa. E te digo mais: não quero que um amigo meu banque o palhaço. Até logo.
Já ia saindo, com sua perna mais curta do que a outra. Então, o Andrezinho arremessou-se no seu encalço: “Mas como é essa Fulana? Bonita?” Peixoto parou na porta do boteco e rilhava os dentes:

— Se é bonita? Um espetáculo! Duzentas vezes melhor que a Heddy Lamarr!

Mete a Lana Turner no chinelo!…

Romance

Nessa noite, Andrezinho custou a dormir. Estava acostumado à mulher bonita, à conquista fácil, mas o fato é que Peixoto soubera criar uma sugestão diabólica.
Quem seria? Como seria? Imaginava um nome, um rosto ou, por outra: imaginava vários nomes e um rosto múltiplo para a estranha.

De manhã, escovando os dentes,
ainda pensava nela com apaixonada obstinação. No ônibus, veio com um amigo. Primeiro perguntou: “Sou bonito?” Em seguida, admitiu:
— Estou interessadíssimo por uma cara que nunca vi mais gorda. Não é gozado?
Do escritório, ligou para o Peixoto: “Deixa de ser sujo e diz logo, quem é a Fulana?”
O outro divertiu-se cruelmente: “Mas você já não está tão cheio de mulher?
Entupido de mulheres?” E Andrezinho:
— Solteira, casada ou viúva?
Peixoto foi irredutível:
— Sossega, Andrezinho, que eu não vou te dizer nada. Ou tu me achas com cara de arranjar mulher pra ti?
Espantou-se:
— Mas olha aqui, seu animal! Não foste tu que tiveste a ideia? Foi ou não foi? Concordou que sim, aduzindo: “Foi, sim. Porém mudei de opinião, ora, bolas! O que é que eu ganho com isso? Ganho alguma coisa? Nada!” Andrezinho desligou o telefone, assombrado. E fez o comentário para si mesmo:
— Que mágica besta!

Imaginação

De noite, encontraram-se no café. Andrezinho, com a imaginação em chamas, arrastou-o para um canto. Naquela noite, fez o monopólio do amigo, absorveu-o.
Mandou vir cerveja, com a ideia de puxar por ele. E, de fato, à medida que ia bebendo, Peixoto abriu-se. Lambendo a espuma dos beiços, admitiu que a outra o conhecia. Andrezinho tomou um susto: “Ah, me conhece? E qual é a impressão dela, a meu respeito?” Semibêbado, Peixoto piscou o olho:
— Te considera um cretino de pai e mãe. Um idiota chapado!
Doeu-se:
— Mentira tua!
E Peixoto:
— Palavra de honra!
Continuaram a conversa, com um imenso consumo de cerveja. Querendo pôr água na boca do outro, Peixoto exagerava: “É boa até depois de amanhã. Dessas que
derretem edifícios!” E, por fim, iluminado pela cerveja, praguejava, como um possesso:
— Olha aqui, seu zebu! Eu sou aleijado, sei que sou! Mas a minha vingança, sabe qual é? — parou, para tomar fôlego. — É que tu não vais conhecer essa pequena, não, percebeste?
Na sua cólera de bêbado, investiu, querendo agredi-lo:
— Pelo menos essa, tu não vais conquistar, porque eu não deixo!

Obsessão

Três ou quatro dias depois, o próprio Andrezinho reconhecia, em pânico, para os amigos mais íntimos: “Estou apaixonado e não sei por quem. Vê se pode?” Mandou emissários ao Peixoto, com apelos desesperados. Mas o outro foi irredutível; fazia um gesto de quem usa fecho-ecler: “Sou um boca de siri.”
E acrescentava: “Andrezinho pode ser bonito lá pra o raio que o parta. Pra mim, não.” O fato é que, depois do seu desabafo no boteco, Peixoto mudara com Andrezinho. Cruzava os braços, fechava a fisionomia, quando o amigo ou ex-amigo vinha pedir:
— Diz quem é. Dá o nome. Só quero saber o nome. Nada mais.
Peixoto calcava a brasa do cigarro no fundo do cinzeiro. Parecia hesitar.
Inclinava-se:
— O nome não digo. Basta que você saiba o seguinte: é a melhor mulher do Rio de Janeiro. A melhor, percebeu?

Andrezinho partia desesperado. Os amigos, impressionados com sua obsessão, tentavam chamá-lo à ordem: “Quem sabe se não é gozo do Peixoto em cima de ti?
Vai ver que é!” Incapaz de atender a qualquer raciocínio, ele explodia: “Eu só quero saber o nome. Bastava o nome. Ou, então, um retrato!” Já não se dizia “bonito”, nem “pintoso”. Admitia: “Acabo maluco, se já não estou.”

No emprego, passava horas imerso numa ardente e inútil meditação. Até que um dia recebe a notícia: ao atravessar uma rua, Peixoto morrera imprensado entre um bonde e um ônibus.

Andrezinho uivou: “Morto?” E soluçava: “Não é possível! Não pode ser!” Uns 15 minutos depois, entrava no necrotério. Ao ver o outro, na mesa, definitivamente silencioso, sentiu-se condenado a amar uma mulher, que jamais conheceria.

Enfureceu-se. Atirou-se ao cadáver, sacudia-o, gritando:
— Diz o nome! Quero o nome! Fala!…
Foi agarrado, dominado. Então, caiu de joelhos, no ladrilho. Seu choro era grosso como um mugido.

Nelson Rodrigues – 1912/1980

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