
Comecei a ler, recentemente, um livro intitulado, “Contos e Novelas”, de Guy de Maupassant que, aliás, recomendo e me deparei, hoje, com um conto chamado,“ A Morta”. A narrativa descreve a dor dilacerante de um homem apaixonado diante da morte de sua amada e a delirante decisão de passar a noite sobre o seu túmulo, como uma forma de dormir ao seu lado pela última vez. Então, andando entre os túmulos e tomado de uma obsessão fantasiosa ele começa a ver os mortos se erguerem e começarem a mudar as frases deixadas em suas lápides, aquelas frases que descreviam suas belas ações em vida, seus atos de bondade e generosidade, sua retidão e honradez, todas elas apagadas e substituídas por outras, essas agora escritas pelas suas próprias mãos e que descreviam os seus atos sórdidos, suas ambições desmedidas, suas infidelidades, suas crueldades praticadas em vida. Por fim, viu o túmulo de sua amada e a verdade por ela escrita substituindo a bela epígrafe, “ Amou, foi amada, morreu”. A frase escrita pela morta, dizia, “saindo um dia para enganar o seu amante, resfriou-se com a chuva e morreu”.
Confesso que o texto me provocou e acendeu em mim alguns questionamentos, alguma reflexão que, já adianto nada tem a ver com conduta moral e seus códigos hipócritas. Antes, pensei no quanto somos suscetíveis ao auto-engano, como nos enredamos em teias que nós próprios criamos e depois nos debatemos aflitos e angustiados procurando culpados a nossa volta. A dor é nossa, mas a “culpa” é sempre do outro. Somos seduzidos pelas nossas fantasias e buscamos alguém ou algo que se encaixe nelas para então nos apaixonarmos e nos decepcionamos ao primeiro vislumbre da realidade. Chamamos de carma, azar, sina, dedo podre, destino, sinônimos que usamos para justificar os nossos fracassos, nossas escolhas baseadas em ideais, na maioria das vezes, inatingíveis. Mentimos para nós mesmos e para os outros, conseqüentemente, e de tal forma que nos moldamos a essa mentira, juntando pedaços que nos pareçam convenientes e adequados até não sabermos mais quem somos. Todos nós conhecemos alguém que virou um personagem, alguém que se afastou tanto de si mesmo e da realidade que já nem se reconhece no espelho e vê apenas a fantasia que criou, o ser ideal para caber num lugar ideal, num mundo irreal. Muitos vivem assim, muitos morrem assim e em seus túmulos a epígrafe é uma farsa, tanto quanto a sua vida. Talvez por isso a morte nos apavore, ela é real, mas nós a negamos e quando a confrontamos, nos despimos, nos fragilizamos, enxergamos a nossa humanidade finita, sem ilusões. A morte representa o fim da vida como a conhecemos aqui, nesse espaço- tempo, mas simboliza a possibilidade de recomeço. Como está escrito, “Se o grão de trigo caindo na terra não morrer, fica ele só, mas se morrer, da muito fruto”.
Ana Angélica Tavares de Mello Cabo Frio, 18 de março de 2021.