
David Bernat
Era uma certa ausência de mundo: todos pareciam se movimentar em torno de um centro, mas cada atenção guardava sua independência. A não ser ao aviso, poderiam dizer que não era um grupo, mas várias pessoas sozinhas juntas. Primeiro, as câmeras acordavam, movidas feito fantoches; depois, as pessoas dizendo suas falas, movendo-se como o previsto, gravadas em mídia digital para a eternidade ― o que é o eterno, para nós, senão projeção? Atores são interessantes de se ver.
E era um papel curioso: ser manifestante. Não simplesmente alguém que reclama, mas ainda sim sobre estar descontente. Era uma bela tentativa de veemência. Bastava um comando; certamente, a cena ficaria pronta nessa tarde. O diretor, sabendo não se tratar de uma obra-prima, apenas tentava inserir organicidade no tumulto: existe uma maneira muito
sincera de se discordar. Devia ser para um comercial, ou um documentário. Todos tinham poucas falas, era mais sobre gestos.
O estúdio não era pequeno, visto a cena que se procurava retratar. Todos olhavam para a mesma direção, o resto dos atores estavam fardados numa linha. Esse grupo permanecia
imóvel, e era ao seu encontro que o primeiro avançava. Mais cedo, o pessoal da produção tentou ao máximo criar uma praça de mentira, um pedaço do mundo. Engraçado que o que falta numa praça não é nada material, mas aquele aspecto quase irrelevante de que o tempo passa.
Quanto ao esforço humano: todos, mais cedo, tinham vestido uniformes de uma refinaria. Alguns traziam cartazes com coisas escritas com tinta preta. Obviamente, não foram eles que fizeram os cartazes. Mas a memória coletiva da nação talvez tenha fortes recordações de gente na rua, reunida, assim ― onde quer que isso tenha nos levado.
O diretor, embora calmo, no fundo não estava muito contente. Depois de tentar algumas vezes filmar qualquer semblante de algo autêntico, parecia começar a entender: o
objetivo é a inconveniência. Talvez seja por isso que o inferno seja os outros, de maneira superficial. Mesmo sendo uma filmagem de pouca importância, sua filiação ao cinema
d’auteur parecia cada vez mais desconcatenada. Lembrando certo diretor japonês, tentava simular movimento: todos os takes eram da massa avançando contra o cordão fardado. Como o movimento, ao todo, era bastante moroso, visto a quantidade de gente, feito uma onda, o olho o registrava de maneira bem agradável.
Parecia estranho algo assim terminar sendo esteticamente agradável, ele achava. A verdadeira vida ausente e nenhum cachorro sem dono na rua. Nenhuma sujeira de segunda,
nenhuma carnação deploravelmente exposta contra a vontade. Apenas pessoas, e talvez nem isso: apenas movimento. Tudo que é conveniente é infértil.
Mas bastava um aviso ― ação! ― e toda aquela energia postiça voltava, num piscar de olhos. Ia de extremo a extremo, do tédio à violência. Muitos atores, já que não eram papéis de destaque, eram iniciantes, apenas tinham feito figuração aqui e ali. E também é um tantocomplicado realmente parecer raivoso quando, na verdade, a tarde parece até agradável. Não é sempre que conseguem um trabalho, a maioria leva como um bico. Sabiam que, depois da montagem, grande parte nem teria alguns segundos de foco na câmera.
Todos queriam ir embora. Apenas o diretor, vendo tudo de um ângulo um pouco elevado, continuava incentivando mais um take: só depois é que iriam parar, voltar para casa, comer e dormir. Alguns fumavam, inclusive o diretor, ainda com um vago sabor de café na boca. Sem fortes estímulos, os ânimos mudam de maneira muito lenta. Não era injustiça, não era castigo: era apenas a busca por algo genuíno, algo além da linguagem.
A onda avançava, numa investida feita de pressa e receio. Quando dava com osegundo grupo, dissipava-se um pouco, cada um ia para um lado: o movimento uniforme se perdia. Então era preciso cortar, pedir que voltassem ao ponto de partida. Alguns takes estavam bons: um filmado pelas costas dos policiais, onde era possível, em segundo plano, ver as pessoas, suas formas sangrando umas nas outras, como uma vazante ― o fim dos takes sempre era ruim, sempre era a mesma bela desordem.
As ordens do diretor não eram exatamente precisas. Logo soube ver o erro: a cada novo take ele pedia algo mais e mais definido. Cada frame uma pintura, disseram uma vez. Se a câmera ver, nós veremos. Parece que essas pessoas não se importam, nunca se importaram: conformismo é uma doença sem cura, tanto quanto a velhice. Outra vez, e
depois outra, sem abaixar a bandeira, sem desviar o olhar. Pessoas morrem, pessoas têm fome. Não é sobre ser inconveniente: é sobre desobedecer ― como vão desobedecer ordens para ser quebradas? Sim, ele soube ver o erro.
Dessa vez é para valer, vocês não querem ir para casa? A massa mais uma vez avançava, embora sem rua de verdade por onde andar. E os fardados em pé, numa imponente
postura, com toda segurança (era só encenação, afinal). Até que, quando o movimento em força começou a se dissipar, um homem pegou um dos outros atores pelo ombro e o trouxe para perto. Do bolso, como quem saca uma arma, tirou um celular onde podíamos ver a foto de duas crianças. E disse:
― Como é que o meu salário vai baixar? Olha para os meus filhos, como é que eu vou dizer que o pai deles não vale nada?
Houve um breve silêncio: todas as pessoas voltaram, momentaneamente, a ser humanas. Todos sabiam o que fazer de suas vidas. Toda aquela vontade postiça, toda aquela
revolta fajuta ― é preciso muita violência para que uma pessoa entenda a vida de outra. É um choque enfático de lucidez e loucura: faz uma alma se permitir deixar levar.
Enquanto isso, uma atriz pensava: é a primeira vez que eu me lembro do meu pai ele dizia que a vida de uma pessoa não é muito coesa ele me disse que quando conheceu a minha
mãe ele costumava pegar ela de carro e ele abria a porta para ela e saía do carro e passava pela frente aí ele tinha que dar a volta de novo mas nisso ela corria para a porta do
motorista e fechava o carro aí ele só deitava no capô e ficava olhando para ela eles ficavam se olhando assim por um bom tempo quase no mesmo mundo agora você entende por que que eu quero ter uma filha enquanto ainda sou jovem essas coisas acontecem o amor é a bússola dos mistérios talvez a humanidade tenha salvação.
Não, não tem. Ninguém ousou dizer uma palavra, as pessoas sentiram uma vergonha profunda. As câmeras gravaram a cena, o diretor ficou contente, mesmo sem esboçar nenhuma emoção. Ele sabia que ela iria mudar o mundo, mas é difícil fazer essas coisas quando você se sente sozinho.
Todos foram para casa. O diretor tomou mais café. Foi como se uma grande cortina se fechasse sobre o mundo. Todos dirigiram, pegaram um ônibus ou dois. E quando chegaram
em casa, foi a mesma coisa. Tomar banho, tentar esclarecer a consciência, dizer que os culpados não somos nós. E depois dormir: inúmeras caras com expressões vazias.