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Crônica/Conto/Poesia

PICADA DE COBRA

O despertador tocou às seis horas da manhã. Ainda bem, pensou. Não precisava mais desse dissabor, haja visto a sua aposentadoria recente, mas, mesmo assim, continuou a programa-lo para o horário de sempre, pois leu em uma revista que isso evitaria uma oscilação brusca nas emoções causada possivelmente pela mudança repentina da rotina. Como dormia em quarto separado do esposo, cabia somente a ela essa decisão. Ele, aliás, que estava há mais tempo nessa condição, se permitia prolongar um pouco mais o sono dos justos.

O alívio, na verdade, foi porque o despertador a retirou de um pesadelo assustador. Desde criança ela tinha pavor de serpentes e nesse sonho era atacada implacavelmente por uma delas. Além da vívida sensação das mordidas, lembrou-se de que ouvira as pessoas ao redor da cena gritarem pedirem para que não reagisse, pois era uma cobra jovem.

Lamentou-se nunca ter aprendido a jogar no bicho, já que seria palpite certeiro. Mas tinha medo e a última coisa que queria era ter que pedir esse favor para alguém. Tinha medo de que a julgassem, sobretudo as senhoras do grupo de oração. O que iriam pensar de mim? Bobagem, pensou, rindo para si mesma. Tomou sua primeira xícara de café (a segunda era só quando o marido saísse do que ela chamava de “a cripta”) ouvindo um programa matinal da rádio enquanto organizava, meio sem jeito, o que seria da sua papelada na escrivaninha daqui por diante. Nada do pesadelo sair da cabeça. E chegou à conclusão de que recebera uma mensagem onírica e, decifrá-la, era uma tarefa importante, talvez até a sua própria sobrevivência estivesse em jogo.

Lembrou-se do velho livrinho de interpretação de sonhos que estaria em algum lugar da prateleira de cima. Achou-o, empoeirado, ao lado de outro manual que dava os significados para os nomes dos filhos que, aliás, ela nunca tivera. A tradução da mensagem era simples e direta, indicando que alguém próximo estava fazendo ou planejando fazer alguma maldade ou, quem sabe, abalar uma relação de confiança. Mas, quem? Foi quando lembrou das pessoas no sonho se referirem a uma “cobra jovem”. Meu São Domingos Abade! É a vizinha novinha que se mudou recentemente! Só poderia ser ela! Eu devia ter logo entendido aquele risinho debochado e notado aquele jeito insinuante demais.  

Por que será que ela quer o meu mal? Inveja de mim? Das minhas coisas? Pera aí… insinuante demais… Ela quer o meu marido! Foi exatamente na hora desse pensamento que ele adentrara a cozinha, deu o seu bom dia de costume com aquele beijo na testa, reclamou um pouco dor na lombar, sentou-se à mesa no lugar de sempre e comentou, despretensiosamente: – Muito simpática a nossa nova vizinha, não acha? Ela é farmacêutica recém-formada e disse que se precisássemos de alguma coisa, algum medicamento, ela teria muito prazer em nos ajudar.

Ela paralisou por um segundo. Mais rápido do que um computador quântico, processou aquele conjunto complexo de informações que uniam os multiversos do sonho e da realidade. Tudo estava explicado e as palavras vinham ao pensamento na velocidade da luz:  – Que sirigaita sem vergonha! Eu sei bem que tipo de remedinho ela quer dar para o meu cacareco e, esse velho safado, mal consegue esconder a empolgação. Eu vou botar essa alquimista da sedução no lugar dela. Ah se vou! Provavelmente os dois já devem estar tramando a minha morte com algum medicamento que a faça parecer natural. Eu só preciso ter a prova final e agir. Me aguardem vocês!

Saindo do estado de animação suspensa, olhou para ele furiosamente, e se limitou a responder com todos os pontos finais visíveis: É. Sim. Simpática até demais. E antes que o marido pudesse reagir, passou a mão na bolsa e saiu em disparada de casa, praguejando alguma coisa como “vai se virando aí e não me espera”, entre outras que pareciam certos palavrões em dialeto italiano, herança da “bisa” que ela cuidava com esmero e só usava quando necessário. Foi direto para a cartomante que sempre a atendia (que diferente de jogar no bicho era algo que quase todas as suas amigas devotas também faziam). Carta para lá, carta para cá, posição tal, perto de qual, longe do que, na casa astral do sei o que e, bingo! Tudo se confirmara ali. Exatamente do jeito que ela esperava que fosse. Pagou e foi-se. Agora, era só questão de observar os passos da meretriz e desbaratar o plano que ela estava tramando para o seu assassinato!

De volta ao prédio, e nos dias seguintes, começou a se comportar como cão perdigueiro, farejando e coletando toda e qualquer evidência de ação mística e química da moça. Fez o mesmo em sua casa. O inventário: Uma estranha folha seca de amendoeira embaixo do seu tapete da ponta de entrada. Uma moeda de um real na gaveta de cuecas do marido, setecentos e oitenta fios de cabelo, para análise posterior e uma embalagem de papel de embrulho de farmácia bem no chão do vão entre a janela da sua casa e a da vizinha. Estranhou que durante aquela semana o marido estava acordando mais disposto e alegre do que o comum. Naquele dia, era quase fim de tarde e ele saiu e disse que voltaria com uma surpresa para ela, que o esperasse. É hoje, pensou ela. É hoje que a cobra dará a picada final! E eis que o velho retorna com um pequeno bolo, todo decorado e com a data da festa de casamento dos dois.  – Como esses dois são cruéis, vão me envenenar e escolheram o dia do nosso aniversário de casamento. E eu esqueci desse dia completamente!

Ela fingiu surpresa (não precisou fazer muita força para parecer que esqueceu) e fez uma condição. Chamar a vizinha e dar a ela a primeira fatia! O marido ficou confuso com o pedido e fez cara de contrariado. – Não, respondeu ele. Isso não tem cabimento.

– Não tem porque ela colocou nesse bolo o veneno que vai me matar, não é? Para depois vocês se esbaldarem como amantes com os “remedinhos da alegria” que ela tem trazido para você. Não adianta mais esconder!

O marido respirou fundo, baixou os olhos, colocou o bolo sobre a mesa. Se dirigiu à porta. Abriu, tocou a campainha da vizinha e pediu a sua presença. A mulher assistia a tudo como se estivesse escrito o final de um dos livros de Agatha Christie.  – Sabe, eu e minha esposa estamos fazendo aniversário de casamento hoje. E, como pode ser o último, nunca se sabe, gostaria que você participasse desse momento. Não tivermos filhos, você entende, então, por favor! Aceite esse primeiro pedaço por nós!

A moça estranhou um bocado, mas não havia como resistir a um bolo delicioso como aquele. Comeu, agradeceu e pediu licença, pois estava no meio de uma ligação telefônica. Retomando a conversa, riu um bocado com o namorado – que ainda morava no exterior – sobre a cena estranha e sobre a delícia daquele bolo. Era uma pena não ter pedido mais um pedacinho. Disse que aceitou porque era um casal simpático, sobretudo ele, um senhor que lembrava muito seu avô, já falecido e para quem, vez ou outra, conseguia os remédios da esposa.

Já a mulher, realmente passou o seu último dia. Pelo menos como casada.

Paulo Cotias é psicanalista, escritor, professor e historiador. Saiba mais pelo site www.psicotias.com ou nas redes @opaulocotias (YouTube, Instagram, Facebook e X).

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