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A ESFERA

A ESFERA

Se por um lado o bem se acaba, o mal também tem cura. – Sérgio Ricardo

É importante não fechar os olhos, tanto quanto respirar. Se estivesse pensando em algo, talvez eu não teria visto aquela mão pequena cometer aquele ato. Eu não estava olhando para a rua, não era um dia movimentado e uma brisa fresca corria entre os prédios. Não, eu não estava: eu era o segundo da fila. Talvez a comodidade desses caixas automáticos seja não estimular que as pessoas fiquem aborrecidas ou ansiosas. As únicas vezes que eu olhava para frente, para os caixas, para a rua, era para ver se alguém já tinha terminado. A mulher na minha frente estava com uma mão no carrinho, a outra trazia um celular ao rosto, mais próximo do que o normal. Era no começo da tarde.

Acho que eu preferia fazer compras depois de ficar de noite, isso antes da rua ficar movimentada. Agora é quase impossível andar com tanta cadeira na rua. A da Passagem, uma com que essa faz esquina, mesmo sendo um eixo muito mais utilizado, em comparação, é quase vazia. Tudo isso é culpa de uma revista londrina. De onde os ingleses resolveram chamar essa de a oitava rua mais legal do mundo? São só alguns blocos entre a Rua da Passagem e os arredores do cemitério. Isso foi terça passada, um dia extremamente anódino, onde alguém não consegue olhar para uma rua vazia sem pensar em como as coisas mudaram, ultimamente. Uma padaria fechou, uma farmácia abriu ― o que isso tem a ver com a minha vida?

Fico meio assustado com o quanto eu tenho me sentido cansado, eu nem tenho trinta. Mas o calor tinha começado a melhorar, e todo mundo sabe como a vida começa de verdade em março. Todas as crianças de uniforme, o fluxo na saída das grandes escolas. Como eu poderia sentir falta do ano passado? Nem mesmo consigo me lembrar de tudo o que aconteceu. Apenas, cansado do verão. Eu tirei algumas cópias da minha chave, eu comprei um novo jogo de copos, realmente não me lembro de estar pensando em nada.

Meu olhar deu com o pé de uma senhora, com seu tamanco. Depois, o percurso comum: uma calça social, uma camisa clara de botões e um cabelo escuro solto. Ela tinha uma cesta na mão e trazia, com a outra, uma menina pelo braço. Ela tinha um cabelo curto, um uniforme branco e verde, e parecia entediada, olhava para trás enquanto sua mãe a puxava para frente. Elas estavam na fila ao lado, para os caixas convencionais. Sua mãe soltou seu braço e as duas ficaram esperando sua vez. Quando a caixa chamou, a mulher pôs a cesta na bancada e começou a retirar suas compras. A menina continuava olhando para trás, sem se virar, por cima do ombro.

Acho que eu estava prestando atenção porque um casal tinha chamado a gerente para retirar um produto que tinham passado duas vezes por engano, o que significa que já tinham mais duas pessoas na fila atrás de mim. A menina olhou mais uma vez para trás, bem rápido. Ficou uns instantes olhando para a mãe, que estava conversando alguma coisa com a caixa. No momento em que as últimas compras estavam sendo passadas, a menina deu um passo para trás, virando-se de uma vez. Não esticou a mão, apenas levantou o braço, como se fosse uma cancela, movendo-se a um ângulo reto em relação ao corpo. Ela pegou uma pera da seção das frutas, que fica perto dos caixas, e colocou no bolso. Eu mal consegui acreditar.

Quando ela voltou para perto da mãe, pude jurar que ela olhou um segundo para mim, antes de retornar ao reino da apatia infantil. Logo sua mãe acabou segurando algumas sacolas de plástico, cheias, e voltou a puxá-la, na mesma direção, agora realmente para a rua. A dinâmica de um mercado é sempre a mesma: as pessoas entram e circulam quase sem direção pelos corredores, até que um sentido oculto parece despertar-lhes uma vontade irresistível de respirar um ar mais fresco, de ter sobre a cabeça algum terrível pedaço de céu azul ― o quanto de espaço uma vida precisa? Eu saí da fila e dei uma volta num corredor: para ser preciso, entrei num de bebidas e saí por um de temperos. Curiosamente, quando eu voltei, não tinha mais fila. Mas antes, a única coisa que eu fiz foi pegar uma pera, do mesmo amontoado que a menina tinha pego, aberto um saco de plástico e dado-lhe um nó, com a pera dentro.

No caminho, logo assim que atravessei a rua e cheguei na esquina, eu tireio saco da minha sacola de pano. Rasguei o plástico e fiquei um segundo olhando para a pera. Tinha um aspecto amarelado, quase envelhecido. Por que que eu comprei aquela pera? Eu não consegui encontrar uma resposta precisa. O sinal, mais em frente, estava fechado. Um outro, alguns blocos no sentido contrário, tinha acabado de abrir. Acho que gostei de segurar a pera na mão ― por um instante eu me senti bem por ter meu lugar dentre a humanidade. Esse vago sentimento de vergonha que me viera quando a menina me olhou, a vergonha de ser testemunha, tinha se dissipado feito uma nuvem, feito gelo num copo de qualquer mesa de bar.

Sendo sincero, eu não estava realmente inclinado a comer a pera. Ainda não conseguia encontrar um motivo. Se fosse uma pera de vidro ou de porcelana, eu poderia deixar sobre a mesa da sala ― mas não era: era uma coisa real, viva, perecível. Qual a diferença entre uma mão que colhe um fruto e a boca que o morde? Não, eu não consigo dizer. Alguma coisa parecia me dizer que eu precisava ir para casa. Mas como eu chegaria em casa com essa pera na mão? Como ela ia tomar seu espaço entre os elementos da minha vida? A mágica já tinha acontecido: as coisas acontecem e depois acabam.

Eu entrei na minha rua e passei pelo bar de esquina. Eu deixei a pera num canteiro, onde plantaram uma árvore esguia, semelhante a uma bancada, todo revestido de azulejo branco. Não olhei para trás e segui pela calçada oposta ao meu prédio, já que era por onde o fresco abrigo da sombra dos imóveis se deitava. Realmente era uma tarde agradável. Eu não espero que a fruta venha a perecer, mas sei que isso sempre acontece, um dia ou outro: não tem o que fazer, a gente tem que aceitar esse tipo de coisa. Talvez, no fundo, não seja tão ruim pensar assim.

22-03-2025

David Bernat

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