Categorias
Crônica / Conto

O MOTORISTA DAS VIÚVAS

Nos anos cinquenta e sessenta a Semana Santa era um acontecimento religioso, que tomava conta de todos na cidade. No entendimento daquele menino de família católica a Procissão do Senhor Morto era o momento que provocava o maior medo. Não era pequeno o temor daquela procissão, que serpenteava pelas ruas escuras de Cabo Frio com a Banda Santa Helena, tocando os hinos mais tristes e lúgubres que a imaginação de uma criança do interior poderia acolher.

Moça educada pela mãe Chiquita para ser uma eterna, “Filha de Maria”, irmandade das mais concorridas da cidade, na qual estavam às moças virgens em idade de casar, mas também as renitentes e mal humoradas solteironas, vigias da castidade alheia. Pois Verinha, a despeito da rabugice da Velha Chiquita, que achava que ela ficaria para o ‘caritó’ por ter perdido uma vista quando menina, casou e após a experiência como “Filha de Maria” foi acolhida e reverenciada, na Irmandade do Santíssimo Sacramento, de fitas vermelhas.

Ser filha de importante salineiro e político, que havia contribuído generosamente para as obras e festejos da paróquia, lhe dava prestígio na Igreja. Os pais haviam morrido, mas aquele jovem pobre com quem casara contra a vontade da mãe, havia se transformado em diretor de empresa,  proprietária de catorze salinas na região. Dentro de uma mesma família, as transformações econômicas apareciam dentro das relações sociais. A empresa local, familiar e patriarcal sendo gradativamente substituída pelas sociedades anônimas, do Rio de Janeiro e São Paulo, mas isso é outra história.

A Dona Verinha era, portanto, uma das senhoras organizadoras da Semana Santa e das procissões para as quais os personagens eram disputados e escolhidos a dedo. O “Anjo Cantor” era dos mais requisitados. A moça de branco, com voz forte, que ecoava por toda a procissão, seguida pelas “viúvas”, sempre de preto que a cada cantata do “Anjo” replicavam com um lamento, “eúúúúúúúúúússss”, que o vento empurrava, em meio a poeira, para todos os cantos da cidade.

Até hoje não sei se Dona Verinha gostava da tarefa. Tímida, discreta ao extremo, detestava aparecer, e raramente permitia fotografias, mas dava conta do que lhe cabia.

Uma bela surpresa lhe estava reservada numa dessas procissões lá pelo início da década de 1960. Não sei por que cargas d’água encarregou o filho mais velho, matriculado no Colégio Salesiano de Niterói, de buscar em casa e levar ao Largo de Santo Antônio, concentração da procissão do Senhor Morto, o “Anjo Cantor” e as “Viúvas”. O “emissário” recebeu recomendações estritas quanto ao horário e comportamento a ser seguido: verdadeiro manual de boas maneiras e pia religiosidade.

A procissão do Senhor Morto sempre saia no final da tarde, mas o horário foi esticando sem que o séquito com o anjo e as viúvas aparecesse para a irritação dos frades, além das carolas e o desespero de Dona Verinha.

A noite entrando e finalmente chegou o filho trazendo as personagens da procissão, aboletadas no simca chambord, azul e branco, como da irmandade das Virgens de Maria, que Seu Saul havia incorporado ao patrimônio da casa por troca de uma “partida de sal”. Arrumados as pressas na procissão, sob olhares de angústia e reprovação,  “anjo” e “viúvas” defenderam seus papéis a contento, embora em duas ou três entradas a voz do “anjo” tenha dado aquela desafinada básica e o gemido das “viúvas” se prolongado mais que pedia o sacro momento. Desafinadas e gemidos prolongados não chegaram a causar confusão, mas uma olhada no interior do simca permitia ver uma garrafa de “cavalo branco” quase escondida embaixo do banco. A propriedade do whisky acabou caindo sobre os ombros do marido de Dona Verinha, que tinha grande know how no assunto e nenhum requisito para o convívio na Igreja, embora sonhasse em ser o provedor da Festa do Divino Espírito Santo.

Naquela noite, a procissão do Senhor Morto serpenteou mais do que deveria e o próprio Noé, o barbeiro mais conhecido da cidade, deu uma derrapada na tuba da “furiosa” Banda Santa Helena.

Em casa o olhar de Dona Verinha prometia que o cipó camarão ia cantar alto no “motorista das viúvas”.

Manoel Lopes da Guia Neto

Compartilhe este Post com seus amigos:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *