Categorias
Crônica/Conto/Poesia

O MISTÉRIO DE DORIVAL

Todas as vezes que os antigos amigos da minha avó a visitavam a cena se repetia. A velha senhora, logo ao chegar e dar os cumprimentos de praxe, começava a sequência de comandos para o pobre do marido. – Dorival, senta ali no sofá. E lá ia o homem, imperturbável, num compasso hipnótico que dava a cada movimento do caminhar ao sentar, a mesma impressão daquele estilo de dança oriental de passinhos tão curtos (e que eu não lembro o nome, desculpem) que nem parece que fazem um baita esforço para se mexerem naquele ritmo.

Depois de posicionar o ancião, lá ia ela toda animada fazer fuxicos com a minha avó. Conversa vai, conversa vem e as duas já estavam improvisando a mesinha do café, por ali mesmo, de modo a molhar e alimentar as palavras, que eram muitas, diga-se de passagem. Ainda de boca cheia, a senhora, de estalo, lembrava do coitado do Dorival. E vinha ela com a xícara cheia de café preto, um pão bengala (naquele tempo não tínhamos o tal “pão francês” ainda) com margarina e uns biscoitinhos doces, por ela selecionados. – Come Dorival. E Dorival, silenciosamente, começava a deglutição.

Uns bons minutos depois, voltava ela para recolher os despojos da batalha alimentar e avisar ao marido de que já já ia avisá-lo de que estavam de saída. Isso, claro, já incluía o comando para que ele fosse ao banheiro, pegasse os embrulhos que eventualmente minha avó preparava (com quitutes ou outros regalos), se despedisse com um aceno e fosse para a rua, cuidar de esquentar o motor do fusquinha azul claro.

Confesso que aquilo me intrigava bastante. Um belo dia, cai na pasmaceira de ler um manual de personagens infantis famosos do meu tempo que, entre outras coisas um tanto inadequadas aos dias atuais como ensinar a fazer fogueiras e amolar facas com a pedra certa, tinha também, vejam só, uma sessão dedicada a técnicas de hipnose. E eu, criança curiosa que fui, resolvi usar os meus novos conhecimentos adquiridos (no caso a hipnose e não os sobre fogueiras e facas) para tentar entrar na mente imperturbável daquele homem e descobrir o que o levava àquele comportamento robótico tão esquisito.

No dia em que eles voltaram, fiquei na sala à espreita. Assim que a senhora deu início aos costumes, ficamos eu e ele na sala. Sentei-me na direção do velho e comecei a olhar nos seus olhos fixamente tentando dominar os recantos daquela mente enigmática. E nada. Nem riso, nem fala, nem expressões, nada. E volta a senhora com um copo d’agua e um remédio na mão: – Toma Dorival! E ele tomou. Naquele dia, em especial, a amiga da minha avó estava meio atacada e falava para aquele homem inerte uma avalanche de queixumes. E ele olhava para ela com aquele olhar de peixe-morto. E eu, frustrado pela minha incompetência como hipnotizador.

Até que fomos todos convidados para as bodas de ouro do casal. Festa bonita, daquelas de antigamente, com muito mais comida, bebida e sinceridade que as atuais. Eu confesso que passei a festa amuado. Mas comecei a notar a quantidade de gente que estava em torno daquele casal. Filhos, netos, bisnetos, amigos, aquele monte de histórias contadas ao mesmo tempo na polifonia das conversas nas mesas e cantos do salão. Tudo parecia estranhamente possível por conta da improvável alquimia que unia aquelas duas criaturas tão complexas e diferentes.

Foi quando, lá para o final da cerimônia, o Seu Dorival misteriosamente pareceu sair do personagem. Agora foi ele quem me olhou nos olhos fixamente e, por um brevíssimo momento, sorriu. Em fração de segundos, a senhora já o havia absorvido de volta ao seu mundo original, direcionando-o a quem cumprimentar.

Mas, foi exatamente nesses brevíssimos segundos que eu finalmente entendi. Aquele sorriso de instantes revelava que tudo o que eu tinha visto até aquele momento era, na verdade, um tratado de sabedoria. Aquele homem estava em paz.

Paulo Cotias é psicanalista e escritor. Visite o site www.psicotias.com e acompanhe os conteúdos do Canal Psicotias no YouTube, Facebook, Instagram e X (Twitter).

Compartilhe este Post com seus amigos:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *