
A primeira notícia que tenho de mim leva a um citroen preto, na região de Baia Formosa, hoje Búzios. Estava com meu avô, Joaquim, proprietário das Salinas Viveiro, que havia comprado aos Lindenberg, aparentados seus que viviam em São Paulo. Salineiro, se desdobrava entre a administração da salina e a política local. Na pequena lembrança e nas fotos acredito que tinha cerca de um metro e setenta, cabeça branca, nem gordo, nem magro. Tento, mas não consigo lembrar a voz dele. Na minha cabeça vem um terno claro, amassado e a gravata com nó mal feito e pendurado desajeitadamente para o lado. Com certeza fruto da doença de Vovó Chiquita incapaz de ajeitar-lhe a gravata.
Nada disso teria a menor importância para as crianças daquela imensa família, constituída por doze filhos e mais três de “criação”, como se dizia naquele início da década de 50, se não fosse o citroen preto.
O velho carro, lustrado zelosamente por Osório, que nos empunha distância, era objeto de desejo dos netos, que se empurravam e cutucavam para ter direito ao privilégio de ser chamado para dar uma volta, pequena que fosse. Desconfio que ser filho da Verinha, a filha que havia casado e ficado em casa paterna, cuidando de Vovó Chiquita, entrevada numa cama por anos, contasse alguns pontos junto ao velho.
De qualquer forma não lembro de Vovô Joaquim me pegando pelo braço, me colocando no carro e muito menos como me aboletei naquelas poltronas cinzas, gastas, do velho citroen. De algum modo, com os meus seis anos, devia me esticar para tentar ver alguma coisa além do painel de instrumentos na minha frente.
A roupa? Como todos os meninos de minha idade, camisa branca, de mangas curtas, calça cinza, sapato ou sandália preta ou marrom. As roupas masculinas, inclusive das crianças eram quase monocromáticas, o espaço para a cor era nenhum, exceto no Carnaval, mesmo assim com restrições: o mundo masculino era cinza.
E lá fui desbravar junto com meu avô, a Baia Formosa. Não sei o que foi resolver lá por aquelas bandas, mas não desgrudei das suas protetoras calças e ele andou pra lá e pra cá o dia que me pareceu todo, mas que era uma tarde. Até hoje quando pergunto a alguém mais velho da família o que Vovô Joaquim tinha pra resolver em Baia Formosa, a resposta vem sob a forma de um sorriso irônico ou a mudez fruto de pergunta imprudente e inconveniente.
Ficamos por lá o dia inteiro e voltamos ao cair da tarde, começava o anoitecer. A estrada sinuosa, de terra batida, cercada pela vegetação, que quase a tomava, era plena em buracos e fazia o citroen sacolejar, mas tudo fazia parte da aventura. Não era qualquer um que passeava de carro com Vovô Joaquim. Foi quando meu avô resmungou: “o tanque do carro está quase sem gasolina.”
Foi à primeira sensação de medo que tive na minha vida: ficarmos eu e meu avô, no escuro, parados no meio da estrada entre Baia Formosa e Cabo Frio. Daquele momento em diante fui contando cada curva, cada centímetro da estrada, torcendo para que a gasolina não acabasse e chegássemos são e salvos.
Quando o carro parou em frente de casa não esperei Vovô Joaquim saltar, dei um jeito de abrir a porta do citroen e embarafustei pelo corredor adentro, procurando os braços da minha mãe. Suspirava de alívio, afinal, chegara incólume das escuras curvas, cheias de mistério, da estrada de Baia Formosa. Minha mãe nunca perguntou que avidez era aquela pelo abraço, saudade do regaço e eu internamente agradeci.
Acredito que meu avô nem se deu conta desse meu primeiro medo. Eram muitos os netos e embora tivesse tido o privilégio de passear no citroen preto, eu era apenas o segundo filho da Verinha, essa sim o xodó da antiga casa, na Rua Raul Veiga.
Naquele mesmo ano de 1956 meu avô morreu. Cresci e outros tantos medos foram acrescentados ao original, que permaneceu escondido, esperando uma história para ser contado.
Manoel Lopes da Guia Neto.