
Estava comprando fósforos, no charuteiro, quando apareceu o Aarão,
impressionadíssimo. Faz a pergunta:
— Sabe quem morreu?
— Quem?
— O Ernesto!
Tomou um susto:
— O marido da Suzana?
Sim, o marido da Suzana, sim!
— Morreu? E quando? De quê?
Entraram no café, sentaram-se e Aarão deu maiores detalhes:
— Morreu há uns quarenta minutos. Colapso.
Norival, mexendo com a colher no fundo da xícara, parecia assombrado: “Ora veja!” Então, vendo o outro pálido, transpirando, Aarão indaga:
— Tu gostavas dele?
— Eu?
— Gostavas?
Norival foi brutal: “Não amola! Ou tu me achas com cara da gostar de homem?” Aproxima a cadeira, baixa a voz e confessa:
— Dele, não. Da mulher, sim. Estou de olho na Suzana!
Atônito, o amigo balbuciou:
— Papagaio!
O Cínico
Quando saíram do café, Norival pergunta: “O enterro vai sair de casa ou dalguma capelinha?” O outro não sabia. Andaram até a primeira esquina, lado a lado. E era evidente que Norival exultava. Antes de se despedir, Aarão pigarreia e aventura:
— Posso te ser franco?
— Claro!
Toma coragem e anuncia:
— Tu sabes que eu não acho a mínima graça na Suzana! Norival, sórdido:
— Nem eu!
— Ué!
E Norival:
— Só me interessa o dinheiro dela. Compreendeste ou queres que eu te
explique? Era demais para o estômago do Aarão. Recuou dois passos, como que ofuscado pelo deslumbrante cinismo do amigo. Gemeu:
— Tu és de morte! Tu és de morte!…
O Velório
Aarão saiu dali e foi espalhar, para os amigos de ambos, que o Norival era “o sujeito mais cínico do Rio de Janeiro”. Os dois se conheciam desde crianças. E o que fascinava Aarão era a absoluta falta de escrúpulos, o impressionante descaro do amigo. Dizia-se o diabo do Norival, inclusive que “tomava dinheiro de mulher”. Não se lhe conhecia uma ocupação, um emprego, nada. Apesar disso, Aarão jamais pensara que o outro fosse o mesmo cínico diante da morte. Benzia-se: “Parei!
Parei!” De qualquer maneira, Aarão quis ver a coisa, de perto. Acompanhado de alguns amigos, comparecia, à noite, ao velório. E, lá, estava o Norival, firme, num terno azul-marinho, gravata preta e sapatos de verniz, farejando a viúva. Sempre que Suzana era acometida por um dos seus intermitentes ataques, Norival se arremessava. Ia buscar copos d’água, cafezinhos, numa solicitude tão contínua e eficaz, que, rapidamente, era o dono do ambiente. De hora em hora, ia adquirindo, sobre a inconsolável Suzana, uma macia, insidiosa e irresistível autoridade. Às três
horas da manhã, já dava ordens à viúva:
— A senhora, agora, vai tomar esse mingau, aqui, d. Suzana.
Soluçou:
— Não quero!…
Insistiu:
— Vai, como não? Sim, senhora!
Por conta própria, mandara a empregadinha fazer um mingau. O fato é que Suzana acabou obedecendo. Pouco antes de sair o enterro, ele já a tratava de você. O assombro, a inveja, a admiração dos amigos não tinha mais limites. Num canto, aos cochichos, Aarão pasmava:
— O que me deixa besta é o seguinte: morreu Ernesto. Muito bem. E não é que o Norival vem dar em cima da viúva na cara do defunto!…
Todo o bairro passou a dizer, isto é, passou a clamar que o namoro começou no velório. Exagero, porque Suzana aceitara as atenções do Norival na maior e mais patética boa-fé. Ela pertencia a uma família de anjos. Seus parentes, tanto do ramo paterno, como do materno, eram homens e mulheres direitíssimos. Aarão ululava, no café, ao dizer:
— Uma família que não tem um ladrão. Vê se pode!
E o fato é que essa virtude foi o maior obstáculo às péssimas intenções do
Norival. Avisaram-no: “Olha: não vão te topar!” Cheio de si, confiante na própria aparência física e na própria experiência amorosa, o rapaz estaria disposto a apostar no êxito. Batia no peito: “Batata! Batata!” Contava com a oposição da família, mas esperava “levar a pequena na conversa”. Caça-dotes confesso, tinha, diante da viúva, uma atitude habilíssima. Não se antecipou ou, para repetir suas expressões, “não forçou a natureza”. Quando achou que era chegado o momento, pronto, agarrou a menina, num desses beijos definitivos. Só a largou no limite extremo da própria
capacidade respiratória. Por sua vez, Suzana, com falta de ar, já esperneava. Diante dele, no assombro do beijo inesperado e feroz, ela pôs-se a chorar. Norival arquejava: “Mas que foi? Tão natural um beijo!” Assoando-se no lencinho, ela, ainda de luto fechado, soluçou a confidência:
— Meu marido não me beijava assim!
Pouco depois, estava Norival no café, exultante. Lambia os beiços: “Beijo de meia hora, contada a relógio!” Os outros indagavam: “E a reação?” Foi categórico:
— Ficou besta! Só faltou subir pelas paredes! E desconfio, cá entre nós, que o marido era um bestalhão autêntico!…
Primeiro Amor
Súbito, Suzana descobria que Norival era, de fato, o seu primeiro amor. De noite, no quarto, cotejava o falecido marido e o atual pretendente. Como eram diferentes os beijos de um e de outro. Fez confidências a uma amiga, viúva também. Soprou:
“Eu não sabia que o amor era assim.” A outra, mexeriqueira que Deus te livre, perguntou: “E teu marido!” Suspiro de Suzana:
— Meu marido era outra coisa.
Apaixonadíssima, aliviou o luto antes do tempo. Mas quando a família soube do romance, andou fazendo sindicâncias. As informações, obtidas aqui e ali, eram as piores possíveis. Esboçou-se uma oposição. Mas Suzana foi categórica:
— Ou vocês deixam ou eu fujo!
Diante disso, houve um recuo geral. O pai, que era um velho bom e honrado, comoveu-se. Disse:
— O que eu quero é a tua felicidade, minha filha. Só. Nada mais…
De noite, na varanda, Norival soprava ao ouvido da pequena:
— Quando a gente se casar, você vai ver o que é lua de mel batata, lua de mel, no duro!
Essa promessa a arrepiava. Ele prosseguia: “Vou te provar que teu marido foi um mosca-morta!” Até que já sabe, enfiou a mão por dentro do vestido e apertou-lhe o biquinho do seio.
Casaram-se, um dia. Já na décima noite da lua de mel, Norival aparecia no café. Alguém fez o comentário jocoso: “Por que é que a lua de mel engorda os homens e emagrece as mulheres?” Norival sentou-se. Com a falta de escrúpulos que tanto
deslumbrava os companheiros, confessou o tédio indescritível daqueles dias: “Já não suporto! Já não aguento mais!” Súbito, porém, transfigura-se. Mete a mão no bolso, extrai de lá um bolo de notas de mil cruzeiros. E admite: “O que salva a minha mulher é que ela é cheia da gaita! Podre de rica!” A partir de então, a vida de Norival foi um cotidiano esbanjamento. De três em três dias, apanhava um cheque com a esposa e ia gastar com as piores mulheres da cidade. Chegava em casa bêbado de cair. Não havia esposa mais humilhada, mais ofendida. E corria, até, que ele, nas
suas bebedeiras monumentais, a castigava fisicamente. Mas havia um momento em que ela se sentia a mais amada das mulheres. Era quando, sem dinheiro, Norival queria um cheque. E, então, a tratava com uma dessas loucuras de lua de mel. Uma vez obtido o cheque, voltava a ser brutal. Num dia, o velho pai soube que o genro esbofeteara a filha. Apareceu, lá, de rebenque. Perguntou: “Onde está o canalha do
teu marido? Vou-lhe quebrar a cara!” Então, Suzana se arremessou, como uma fera:
— Olha aqui, papai: não se meta! Não dá palpites!
— Mas é um miserável! Quer o teu dinheiro!
Ergueu o rosto: “Seja um miserável! Seja o que for! Mas eu não admito que
ninguém fale mal dele!” Começou a chorar. Disse ao pai atônito:
— Um carinho que ele me faça, um só, vale todo o meu dinheiro!
Caiu de joelhos; soluçava, com o rosto mergulhado nas duas mãos:
— Quando ele me beija, eu sou a mais feliz das mulheres! A mais feliz, papai!
Nelson Rodrigues – 1912/1980.