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BOLA OU BÚLICA?

Tenho me surpreendido com a gentileza pouco comum dos motoristas que param antes da faixa de pedestres, quando vou atravessar a rua. Tento acreditar que a gentileza se deve a um surto de educação no trânsito, fruto do árduo trabalho da Guarda Municipal. Resisto à ideia que o salamaleque aconteça por conta dos meus cabelos cada vez mais brancos, a barriga frondosa, que carrego com certa dificuldade aos 70 anos.

Esta sensação me tomou por inteiro quando há algumas semanas estava na fila do caixa eletrônico do Banco do Brasil, debaixo de um sol forte e uma senhora, bem velhinha mesmo, desceu as escadas e me vendo na rabeira da fila chegou de mansinho e com discrição disse com carinho no meu ouvido: “o senhor não precisa estar aí”. Naquele momento me senti “pra lá de Bagdá”, “cantando pra subir” ou coisa parecida. Teimoso, com os pés cansados, agradeci, mas permaneci na fila que se arrastava em frente a agência.

Mais tarde, racionalizando, aproveitei para fazer uma prometida autocrítica e atribui ao jeito largado da vestimenta, a falta de prumo e ao meu incrível mau humor para enfrentar qualquer fila. Imaginei que a testa franzida, o ar preocupado das contas a pagar, tinham contribuído para que aquela senhora, certamente não muito atenta, tivesse colocado no meu lombo uns dez anos a mais.

Em vão! Não consegui escapar da mocinha da padaria que passa um pito quando peço um pedaço da torta com cobertura de chocolate: “o senhor não pode comer doce, olha a taxa, diabetes não é brincadeira”. Pressionado, troco o chocolate por uma torta diet de damasco, que não tem sabor de nada e fico praguejando baixinho.

Quase escorraçado, passo no caixa, pago o pedaço daquela coisa que me empurraram como torta  e peço um cigarro a varejo, mas cometi a besteira de dizer que não queria com filtro branco. O caixa tentou esboçar uma leve observação, mas a  cara de pouquíssimos amigos deve tê-lo desanimado. Me senti como um meliante vigiado por todos os lados. Na mesma calçada da padaria está a clínica onde meu cardiologista tem consultório: com cuidado, atravessei a rua, apressei o passo e escondi o cigarro com a mão em concha. Escapei. Ufa!

Ninguém mais me chama de você. É senhor pra cá, senhor pra lá. A primeira vez que notei também estava numa fila, elas me perseguem, só que em frente à bilheteria do cinema. Uma garota pediu para comprar dois ingressos para ela e o namorado:

– Tio, o senhor pode comprar duas entradas pra gente?

Comprei, mas a menina não escapou da cara antipática e dos pequenos grunhidos. Certo que me achou um velho ranzinza e chato, só aturado porque a fila era imensa e o filme muito bom. Desde então, só os velhos amigos, tão óbvios quanto eu, me chamam de você. Não é consolo, apenas sentimento de irmandade e cumplicidade. Só aumenta a sensação de estar no gueto.

Por esses dias o joelho começou a doer. A princípio não dei bola, mas o desconforto foi aumentando, dificultando as caminhadas e me convencendo a procurar um médico. Entrei em contato com o clínico, que me encaminhou a um ortopedista. Quando entrei no consultório vi um senhor baixinho, calvo e com uma respeitável barriga, se é que barriga pode dar respeitabilidade a alguém. Senti familiaridade e imaginei que o tal Dr. Hélcio poderia ter sido meu colega nos tempos de ginásio no Pedro Álvares Cabral, em Copacabana. Que nada! O Dr. Hélcio havia sido meu aluno de História do Brasil, no pré-vestibular quando de minha passagem pelo Colégio Werneck, em Petrópolis. Foi uma festa, para o Dr. Hélcio, é claro, que examinava, apertava daqui e dali, provocando aquele “leve incômodo”, até que veio o veredito:

– Olha professor o senhor vai fazer uma ressonância magnética, mas pelo que estou vendo aqui, disse enquanto apertava à parte interna do joelho, o senhor está com desgaste nas articulações.

Retruquei dizendo que não jogava bola e que estava sem caminhar há pelo menos dois anos. A resposta veio certeira: professor, é claro que o excesso de peso agrava, mas a questão é a idade e se encarregou de recitar uns cinco ou seis nomes científicos para problemas da velhice, caracterizados é óbvio, como inevitáveis.

Aperreado, fiz a tal ressonância. Fiquei cerca de uma hora isolado dentro da sala branca, imóvel, vestido com uma bermuda ridícula, em companhia do tal aparelho de última geração, que emitia ruídos estranhíssimos seguido de silêncios absolutos.  Como fui o último a ser atendido, num fim de tarde de sexta-feira, temi que me tivessem esquecido e que o resgate só chegaria segunda. Antes que a neura tomasse conta, a mocinha toda de  branco abriu a porta, anunciando o fim da sessão e elogiando meu comportamento ‘imóvel’. O laudo, entretanto, após uma semana de espera foi inapelável: desgaste. Nem me dei ao trabalho de voltar ao Doutor Hélcio. Velhice e pronto.

Além de rir com a ironia possível, o que faço é tentar refugio na meninice que procuro manter na pós-maturidade. Mas, sinto que o menino vai escapando pelos dedos devido à incapacidade de domá-lo, de fazê-lo participante do meu dia-a-dia cada vez mais tedioso.

Fico horas conversando com os amigos, lendo o que chega às mãos, enquanto o menino quer fazer molecagens: dizer um monte de bobagens e trazer pra si o olhar das garotas que passam. Ao ficar preso, torna-se invisível, sem sabor, sem tesão.

Percebo que o menino quer ir embora. Mas é parte da minha alma.  O jeito é prendê-lo, usando artifícios.  Prometo picolé em dia de chuva e as mariolas da infância. Mas sinto que devo deixá-lo ir para que possa voltar a soltar pipa, jogar pião mata-cachorro e cair no bola ou búlica.

Viver tudo de novo, como faz sempre.

Manoel Lopes da Guia Neto

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