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Crônica/Conto/Poesia

O JUMENTO NA GAIOLA

Como acontecia todos os dias naquela cidade interiorana, a pequena bodega localizada na única rua com calçamento recebia aquele mesmo grupo de velhos amigos. Velhos, aliás, não eram todos. Havia alguns mais novos, seja pela idade dos ossos, pela mente arejada ou a combinação de ambos. O dono da bodega, representava bem o último grupo, por exemplo.

Era um dia como outro qualquer. Lugar de sol quente, daqueles que quando a chuva dá o ar da graça, faz um estrago monumental, talvez só para compensar a longa ausência. E fez um sol de lascar naquele dia em especial, mas que não impediu o encontro que acontecia religiosamente no fim de tarde.

Alguns vinham da lida, do trabalho cansativo, temperado pelo suor abundante. Outros já estavam aposentados, levando consigo apenas os calos que acumularam na pele curtida e no semblante resignado de uma vida que conhece alegrias bem distantes do luxo.

O papo evoluía bem. Uns bebericavam, outros se concentravam nas lascas de mortadela, carne de sol, um docinho caseiro de amendoim aqui, um peixinho salgado (que às vezes dava o ar da graça) acolá… Até que um dos patriarcas, levantou-se e ficou como quem desejava capturar a atenção de todos para um pronunciamento fantástico:

– Eu crio um jumento na gaiola.

Risada geral. Todo mundo ali criava algum tipo de passarinho, trinca-ferro, canário, periquito e afins. Mas, jumento? Logo começaram a especular que o homem tinha feito, na verdade, uma jaula!

– Não, eu crio jumento é na gaiola mesmo. Aliás, vamos fazer uma aposta. Pegue aqui na venda a gaiola do tamanho que você quiser, que eu coloco o meu jumento dentro dela.

O irresistível apelo do dinheiro fácil constituiu rapidamente a banca e as apostas, ainda que modestas, dariam o bastante para uma certa bonança, que seria gastada ali mesmo, na própria bodega. O desafiante passou a mão numa gaiola de coleiro e foram em romaria para ver o tal jumento.

Chegando perto da propriedade, todos viram o jumentinho lá no pasto, pastando preguiçosamente na sombra da árvore onde estava amarrado. A troça corria solta: – mas não era para o bicho estar na gaiola? – você amarrou na árvore para ele não voar? E por aí foram até que o velho pediu a gaiola. Posicionou cuidadosamente todos em fila e, colocando a gaiola exatamente na distância e na posição adequadas, convidou-os a observar.

Realmente, o jumento estava dentro da gaiola.

Apesar dos protestos, pagaram o que deviam e o velho comeu, bebeu e riu durante anos contando essa história do prejuízo que dá quando a gente acha que só o nosso jeito de ver e entender as coisas é o verdadeiro.

Paulo Cotias é psicanalista e escritor. Visite o site www.psicotias.com e acompanhe os conteúdos do Canal Psicotias no YouTube, Facebook, Instagram e X (Twitter).

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