
Tudo começou com o despertador que, pela versão que eu conheço dos fatos, não tocou. No estado de torpor e agitação da ressaca em que se encontrava, o pobre homem tentava fazer girar aos trancos as engrenagens cerebrais para criar rapidamente uma desculpa para o compromisso perdido. Uma vez elaborada, correu com um pacote de fichas telefônicas para o orelhão próximo ao botequim pelo qual, estrategicamente, já adentrara rapidamente para engolir uma xícara honesta de café.
Não podemos esquecer de registrar que a desculpa inventada para o sono mais alongado foi um mal-estar misterioso. Assim, marcaria um tempinho para a fermentação da mentira e logo levaria a encomenda assim que pudesse. Antes, porém, passaria rapidamente no hospital para tornar mais crível a história.
Do outro lado da linha, o dono da revenda que esperava que o homem levasse até ele a peça encomendada, entrara em pânico. A entrega era imperativa e seu cliente não poderia esperar nenhum dia. Tratava-se de uma pequena, mas importantíssima peça do complexo sistema de abastecimento de água da cidade. Ofereceu-se para buscar então imediatamente. O homem, porém, relutou. Mantendo a integridade da mentira, disse que o mal-estar poderia ser coisa grave e contagiosa e antes faria o gentil favor à humanidade de passar pelo crivo da ciência médica.
Para o representante da companhia de água, o dono da revenda se justificou que a ausência da peça vital conforme o combinado se deu em função de um possível assalto no caminho, aguardando confirmação. Chegando na companhia de água, o representante ligou para a polícia para pedir ajuda com relação ao fato. Como não havia a peça, foi necessário o pior, interromper o abastecimento. A polícia pôs-se ao encalço dos supostos assaltantes já que ninguém poderia ficar sem água na cidade por falta de segurança!
Na empresa de água, a imprensa foi apurar as explicações. O setor de comunicação, para ganhar tempo e distrair a população, lançou mão da criação de que tudo se deu, aparentemente, pelo rompimento de uma tubulação que foi prensada pelo afundamento do velho prédio ainda em demolição e que eles aguardavam os equipamentos e equipes especializadas para tratar da situação. Assistindo ao noticiário, os bombeiros se juntaram à defesa civil da cidade e puseram-se em frenética marcha para o local. Não se poderia admitir a cidade sem água em função de um problema que já poderia ter sido resolvido!
Depois de ouvir também os bombeiros, o repórter resolveu se dirigir ao hospital para apurar o impacto da falta de água no atendimento. Ao receber a explicação de uma suspeita de explosão no prédio abandonado, juntara por conta própria com os fatos que havia coletado de antemão com a polícia e cravou que a explosão e a falta d’água foram causadas por uma bomba colocada por um criminoso que já estaria sendo procurado pelos policiais. Adicionando um tempero com o sabor do sensacional, sugeriu que motivação do atentado seria política!
Ao saber disso, o prefeito ligou imediatamente para o governador, que por sua vez ligou para o presidente, que ligou para o seu ministro, que ligou para o governador, que ligou para o prefeito, anunciando o envio de tropas especiais de combate. As notícias se espalharam ainda mais rapidamente.
No hospital, o repórter notou um homem que olhava fixamente para o televisor atônito com as últimas notícias. Ele suava e tremia, parecendo em choque. O que seria uma entrevista perfeita logo levantou suspeitas. O homem, ao perceber a abordagem do repórter correu desesperadamente para fora. Não havia dúvidas, tratava-se do suspeito!
O alvoroço foi geral. O homem, ainda mais desesperado ao ver a perseguição que se formava no seu encalço correu para o único lugar onde poderia se refugiar. O botequim sem televisão, rádio ou interação com o mundo externo, onde tomara o cafezinho apressado antes de ligar para o dono da revenda com a desculpa de que estava doente.
Mas para convencer o bodegueiro a fechar o estabelecimento, acrescentara uma camada extra ao processo, dizendo que a multidão que o perseguia era por conta da água contaminada por um veneno que transformava pessoas em zumbis enfurecidos antes que o atentado político ao prefeito feito com a explosão que causou o afundamento do prédio abandonado, que quebrou a tubulação, interrompesse o abastecimento de água.
Pediu ao trêmulo imigrante uma dose de heroísmo (já havia tomado três de outro tipo de “coragem líquida”) para que levasse uma peça até a empresa de fornecimento de água a fim de salvar a humanidade desse apocalipse. E assim foi.
Com a peça chegando finalmente seu destino, cada camada dessa embrulhada foi sendo desfeita, cada qual retirando o seu pedacinho de narrativa. O dono do botequim foi ficando furioso em saber, com os desdobramentos, de que na verdade só fora feito de entregador por aquele homem folgado! Como castigo, retirou seu prego e o transformou em persona non grata no estabelecimento, com direito a foto e tudo mais.
E tudo passou a transcorrer cada vez mais tranquilamente na cidade. Até que, numa manhã chuvosa de terça feira, aquele repórter resolveu se refugiar no botequim e esquentar um pouco a goela. E foi aí que viu a foto daquele rosto que ele não esquecera.
Paulo Cotias é psicanalista e escritor. Visite o site www.psicotias.com e acompanhe os conteúdos do Canal Psicotias no YouTube, Facebook, Instagram e X (Twitter).

