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Pequenas Doses

VOCÊ ESTÁ DEMITIDO?

Naquela noite ele dormira mal. Era como se algo já o provocasse no campo da intuição de que aquela terça feira seria o dia da sua demissão. Mudança de emprego para ele não era bem uma novidade, pois já passara por algumas experiências. Porém, diferente desse sentimento incômodo que o arranhava, em todas as outras houve todo um processo que deixava claro os sinais de que o ciclo estaria se fechando contando, inclusive, com uma honesta solenidade final presidida por quem o contratara. Coisas começam, coisas terminam, vida que segue.

Mas, dessa vez, era diferente. Já o haviam prevenido sobre o patrão comportar-se como uma esfinge. Talvez não fosse bem isso, já que o chefe não era dado a enigmas e mistérios. O fato é que ninguém conseguia saber ao certo com qual persona do patrão estava lidando porque isso variava de acordo com quem estava ocupando os seus ouvidos naquele momento. Para uns em função dessa natureza movediça, o patrão passou a ter o costume de incumbir a esses mesmos habitantes das suas orelhas a missão de executar as demissões do momento. Mas, para a maioria, era de fato a demonstração de uma maldade calculada, aquela que gosta de usar as mãos dos outros para fazer a sujeira e, assim, não borrar a sua finíssima maquiagem de bom moço.

E foi aí que a confusão começou. O problema maior era que a população das orelhas aumentara além da conta. Com isso, naturalmente, começara uma feroz briga por espaço e isso era ainda mais dramático em função de que, apesar de virem em par, eram pequenas demais para abrigar tanta gente. Apesar de tudo isso, o patrão apreciava no seu intimo esse tipo de situação. Gostava tanto que passou a impressão de que eram justamente as suas orelhas que o faziam tomar as decisões importantes da firma. Trocando em miúdos, era por meios dos seus abanos auriculares que se decidia o que fazer ou não, as promoções, admissões, quem era ou não confiável e, é claro, quem seria demitido.

Obviamente que isso se desenrolava em uma viscosa e cada vez mais espaçosa trama. E foi no meio dessa gelatina de interesses que partiu a ordem para demitir o nosso personagem sensitivo. Decisão tomada e seguindo o costume que todos já conheciam, foi designado um portador para a foice. Com a missão, o ceifador dedicou-se a treinar exaustivamente cada passo que lhe fora prescrito para a tarefa. Tudo parecia ir bem até que soube na véspera que, assim que concluísse a tarefa, seria ele o próximo a ser demitido e que o patrão também já designara o seu mensageiro. Foi então que decidiu protelar a demissão do nosso insone personagem inicial para iniciar uma investida contra o seu próprio algoz. Começou a espalhar a notícia, nos círculos certos é claro, de que também estaria na mesma situação aquele que o iria demitir assim que ele demitisse o nosso demissionário personagem. O caos se instalou. O futuro algoz, quando soube o nome do seu equivalente, tratou de dar continuidade aos rumores. Com isso, os fios se cruzaram e, de repente, em todos os escalões da firma havia demitidos, algozes e candidatos a candidatos aos cargos que, por sua vez, já estavam cogitados como algozes e demissionários ao mesmo tempo.

De início, o patrão tentou fechar as orelhas, mas os ouvidos internos não tinham a mesma sorte. Com a cacofonia de ceifadores e ceifados, não adiantava nem sequer o seu desmentido. A firma parou. E só voltou a funcionar aos trancos e barrancos quando surgiu o forte rumor de o patrão seria o próximo a cair, que já se sabia quem seria o mensageiro e, especialmente, quem assumiria o seu lugar. Em tempo, antes que toda essa embrulhada tivesse seu desfecho, nosso personagem pediu demissão.

Paulo Cotias é psicanalista e escritor. Visite o site www.psicotias.com e acompanhe os conteúdos do Canal Psicotias no YouTube, Facebook, Instagram e X (Twitter).

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