
Que o diabo é uma criatura ardilosa todos nós sabemos. O que poucos imaginam, talvez, é que às vezes a sua maldade vem embrulhada em um perverso senso de humor. Se o sujeito soubesse disso antes, provavelmente pensaria duas vezes antes de invocar o “coisa ruim” para com ele chegar a um entendimento. A essa altura, as pessoas podem pensar que o homem é daquelas figuras performáticas, cheias de badulaques, roupagem monocromática e hábitos insólitos. Nada disso. Se você topasse com o sujeito, acharia que se trata de uma pessoa absolutamente comum.
Só que naquele dia ele vislumbrou aquela mesma visão a que o Senhor resistira no seu retiro no deserto, os reinos desse mundo, poder, glórias e riquezas ilimitadas e, especialmente, impunes. Só que ao invés de dar uma esculhambada no capeta, como bem o fez Nosso Senhor, o infeliz ganancioso abraçou a oportunidade. E é a partir daí que a história ficou curiosamente absurda.
É que o diabo fez uma única exigência para o seu novo sócio. Ele teria tudo o que pedisse, com a condição de que todas as manifestações da sua existência, as mínimas inclusive, fossem teatralizadas. O homem estranhou. Como poderia ser feita tal exigência? Não bastava os requisitos clássicos, um sacrifício, uma vida de pecado e maldades, uma promessa da alma e coisas do gênero? Simples, disse o enganador. Um dos meus serviçais estará sempre ao seu lado, soprando o roteiro do seu comportamento, da sua fala, das suas ações e, com o tempo, você não terá que fazer grandes esforços, pois ele cuidará também dos seus pensamentos. Trato feito.
Logo, no primeiro bom dia recebido ao pisar fora de sua solitária residência interior, o homem travou, como que congelado por segundos. Seu semblante foi se moldando em segundos como se alguém lhe puxasse as bochechas para a medida exata do sorriso, nem muito cínico, nem tão caloroso e o mesmo foi sendo feito com suas sobrancelhas, marcas de expressão, até que a voz finalmente saiu em resposta, diante do outro sujeito meio assustado com a reação.
Com o tempo, a coisa foi se mostrando natural e simples. Tão simples que o homem agora era uma figura de reconhecimento, prestígio e poder praticamente sem fazer muita força. E, ao que tudo indicava até ali, o diabo se mostrava um sujeito de palavra. Mas – e sempre tem um “mas” quando o assunto tem aquele toque de enxofre- as coisas saíram do controle. O homem desandou a interpretar a si mesmo de tal modo que até ele mesmo já não sabia ao certo distinguir entre a realidade e o roteiro.
Para piorar, o decaído cuidara de tudo. Uma enorme quantidade do respeitável público se comportava como uma plateia extasiada, justamente porque ele havia colocado uma sementinha do próprio desejo do seu novo sócio no coração de cada um. Ou seja, o público participava do teatro do cotidiano justamente por sentir aquela sensação lá no íntimo de que seriam, a qualquer momento, chamados para ser protagonistas ou pelo menos fazer parte da peça. O ardiloso, no entanto, já havia cuidado para que, no devido tempo, percebessem que não passariam, no máximo, de miseráveis figurantes.
Como essa história se passou há alguns séculos atrás, provavelmente muito se perdeu e as versões se desencontram. Uns diziam que o homem perdeu tudo justamente porque passou a viver mais na fantasia do que na realidade. Outros garantiam que a ambição dos “atores coadjuvantes” do seu entorno custara dramaticamente o seu lugar na companhia; e outros ainda afirmavam que quando a encenação já estava abusada ao ponto de ciscar no terreno da fé, Deus resolveu pôr ordem na casa e acabar com aquela traquinagem infernal. O desfecho real, ninguém sabe ao certo. Certo mesmo é o bom e velho conselho de que, quando a vida vira um espetáculo, tudo o que se tira dele é meramente cenográfico. E, dependendo de quem dirige a cena, não vale a pena nem a bilheteria e menos ainda o cachê pela interpretação.
Paulo Cotias é psicanalista e escritor. Visite o site www.psicotias.com e acompanhe os conteúdos do Canal Psicotias no YouTube, Facebook, Instagram e X (Twitter).
