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Crônica / Conto

RIQUINHO NO CORTIÇO

Paulo Cotias (*)

Todos no bairro sabiam que a dona do cortiço tinha por hobbie o aluguel das suas questionáveis instalações. A sua verdadeira profissão era, na verdade, a investigação e compilação de informações estratégicas que, no vernáculo popular do bairro, era mais conhecido como fofoca. Dedicava-se com tanto esmero ao ofício que atingira o íngreme patamar dos que dissimulavam ao ponto de dizer detestar fofoca. Juro por Deus!. Talvez por isso sequer requisitasse muitas explicações sobre seus inquilinos, bastando quase sempre o primeiro nome e o primeiro aluguel. Pagou, morou. E, quanto ao resto, respondia-se na emocionante caça pelas informações. Nesse sistema, os inquilinos eram, na verdade, as presas perfeitas de um safari humano.

E foi assim que, muito estranhamente, aquela mulher aparentemente na casa dos seus quarenta anos foi parar naquelas bandas. Na primeira semana, o primeiro relatório já havia sido compilado. O digníssimo esposo da dona do cortiço, que fazia as vezes de faz-tudo do lugar e que respondia pelo codinome “cacareco”, realizou a missão de reconhecer o terreno como batedor avançado, indo verificar as instalações para a nova moradora. Resultado: todo o mobiliário que já havia sido catalogado visualmente durante a mudança (assim, como a placa do caminhão, valor do frete, nome do motorista e um barulho metálico estranho vindo do eixo, mais próximo da roda esquerda dianteira), fora confirmado meticulosamente, agora com a disposição espacial na nova casa.

Municiada pelo seu serviço avançado de inteligência, era a hora da dona do cortiço mostrar suas habilidades. E foi assim, ouvindo uma conversa telefônica da inquilina com todos os seus equipamentos de escuta pelas paredes (seu ouvido, um copo e um estetoscópio que cacareco havia encontrado na lixeira), que fez a descoberta mais impactante. Aparentemente, a conversa da inquilina era com uma amiga, na qual dizia que “ele finalmente voltaria para ela”, que “sentia muita falta do seu riquinho”.

Rebuliço geral. A dona do cortiço se viu na contingência de convocar o conselho geral, suas filhas, irmãs e outros agregados que estagiavam no ofício. Será que essa vizinha era, na verdade, um amor desgarrado de algum ricaço que a trocou por uma aventura e agora se arrependera? Fazia sentido, afinal, se foi parar no cortiço, presumivelmente a situação financeira deveria ter sido abruptamente alterada. Na ata final das longas discussões regatas a café melado de açúcar e cortes sortidos do mesmo pão com margarina, chegou-se a conclusão de que essa seria uma chance e tanto de atravessar esse reencontro e, quem sabe, fisgar o riquinho. O compromisso, no entanto, era corporativo. Quantas mais tentarem, maior a chance de uma, ao menos, ter sucesso. E se o tiver, terá que amparar o restante das acionistas.

Fingindo pendurar as intermináveis roupas no varal, a dona do cortiço conseguiu escutar que o riquinho finalmente iria reencontrar sua amada em quatro dias e foi assim que, reportando ao conselho, resolveram promover para a nova vizinha uma festa de boas-vindas. A inquilina achou esquisito, falou que receberia alguém muito especial justamente naquele dia e horário. Porém, não teve forças para se desvencilhar da homenagem, ainda mais por que a dona do cortiço enfatizou que esse alguém seria também muito bem-vindo.

Salões foram requisitados para a tarefa de produzir belezas fatais ao olhar. Perfumes e maquiagens escandalosos e atualizações enigmáticas nas redes sociais. Os consortes que não foram despachados para a orla exterior do bairro foram designados (e resignados) a queimar a carninha do churrasquinho, cuidar da geladinha e disparar a playlist de sofrência. Foi quando a vizinha (mais agourada que comemorada) avisou que o riquinho acabara de chegar. A festa esquentou, a música subiu, a cerveja trincou e o carvão estalou. As mulheres correram apressadas à porta, se acotovelando, trocando insultos em voz baixa, empurrando daqui e ali tentando conquistar o melhor ângulo assim que a porta da entrada fosse aberta e revelasse o riquinho, que já estava por de trás dela, aguardando impavidamente no colo da funcionária do transporte da clínica veterinária.

(*) Paulo Cotias é psicanalista clínico e escritor. Visite www.psicotias.com e inscreva-se no Canal Psicotias no YouTube para conteúdos exclusivos!

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