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Crônica / Conto

INCIDENTE NA CASA DO FERREIRO

Luís Fernando Veríssimo

Pela janela vê-se uma floresta com macacos. Cada um no seu galho. Dois ou três olham o rabo do vizinho, mas a maioria cuida do seu. Há também um estranho moinho, movido por águas passadas. Pelo mato, aparentemente perdido – não tem cachorro – passa Maomé a caminho da montanha, para evitar um terremoto. Dentro da casa, o filho do enforcado e o ferreiro tomam chá.

Ferreiro – Nem só de pão vive o homem.

Filho do enforcado – Comigo é pão, pão, queijo, queijo.

Ferreiro – Um sanduíche! Você está com a faca e o queijo na mão. Cuidado.

Filho do enforcado – Por quê?

Ferreiro – É uma faca de dois gumes.

(Entra o cego).

Cego – Eu não quero ver! Eu não quero ver!

Ferreiro – Tirem esse cego daqui!

(Entra o guarda com o mentiroso).

Guarda (ofegante) – Peguei o mentiroso, mas o coxo fugiu.

Cego – Eu não quero ver!

(Entra o vendedor de pombas com uma pomba na mão e duas voando).

Filho do enforcado (interessado) – Quanto cada pomba?

Vendedor de pombas – Esta na mão é 50. As duas voando eu faço por 60 o par.

Cego (caminhando na direção do vendedor de pombas) – Não me mostra que eu não quero ver.

(O cego se choca com o vendedor de pombas, que larga a pomba que tinha na mão. Agora são três pombas voando sob o telhado de vidro da casa).

Ferreiro – Esse cego está cada vez pior!

Guarda – Eu vou atrás do coxo. Cuidem do mentiroso por mim. Amarrem com uma corda.

Filho do enforcado (com raiva) – Na minha casa você não diria isso!

(O guarda fica confuso, mas resolve não responder. Sai pela porta e volta em seguida).

Guarda (para o ferreiro) – Tem um pobre aí fora que quer falar com você. Algo sobre uma esmola muito grande. Parece desconfiado.

Ferreiro – É a história. Quem dá aos pobres empresta a Deus, mas acho que exagerei.

(Entra o pobre).

Pobre (para o ferreiro) – Olha aqui, doutor. Essa esmola que o senhor me deu. O que é que o senhor está querendo? Não sei não. Dá para desconfiar…

Ferreiro – Está bem. Deixa a esmola e pega uma pomba.

Cego – Essa eu nem quero ver…

(Entra o mercador).

Ferreiro (para o mercador) – Foi bom você chegar. Me ajuda a amarrar o mentiroso com uma… (Olha para o filho do enforcado). A amarrar o mentiroso.

Mercador (com a mão atrás da orelha) – Hein?

Cego – Eu não quero ver!

Mercador – O quê?

Pobre – Consegui! Peguei uma pomba!

Cego – Não me mostra.

Mercador – Como?

Pobre – Agora é só arranjar um espeto de ferro que eu faço um galeto.

Mercador – Hein?

Ferreiro (perdendo a paciência) – Me dêem uma corda. (O filho do enforcado vai embora, furioso).

Pobre (para o ferreiro) – Me arranja um espeto de ferro?

Ferreiro – Nesta casa só tem espeto de pau.

(Uma pedra fura o telhado de vidro, obviamente atirada pelo filho do enforcado, e pega na perna do mentiroso. O mentiroso sai mancando pela porta enquanto as duas pombas voam pelo buraco no telhado).

Mentiroso (antes de sair) – Agora quero ver aquele guarda me pegar!

(Entra o último, de tapa-olho, pela porta de trás).

Ferreiro – Como é que você entrou aqui?

Último – Arrombei a porta.

Ferreiro – Vou ter que arranjar uma tranca. De pau, claro.

Último – Vim avisar que já é verão. Vi não uma mas duas andorinhas voando aí fora.

Mercador – Hein?

Ferreiro – Não era andorinha, era pomba. E das baratas.

Pobre (para o último) – Ei, você aí de um olho só…

Cego (prostrando-se ao chão por engano na frente do mercador) – Meu rei.

Mercador – O quê?

Ferreiro – Chega! Chega! Todos para fora! A porta da rua é serventia da casa!

(Todos se precipitam para a porta, menos o cego, que vai de encontro à parede. Mas o último protesta).

Último – Parem! Eu serei o primeiro.

(Todos saem com o último na frente. O cego vai atrás).

Cego – Meu rei! Meu rei!

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