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Pequenas Doses

AS UVAS

Dalton Trevisan – 14/06/1925 – 09/12/2024.

O herói subiu pelo elevador com o velho, um a examinar o outro. Saltaram ambos no quarto andar. Ele apertou a campainha. Na porta ao lado, o velho escolhia uma chave. Nelsinho entendeu na sua careta zombeteira — Olha aí mais um…

– Como vai o doutor? — cumprimentou Ivone, cerimoniosa. Fechou a porta e sorriu:

– Tratei você de doutor. Esse velhote não me deixa em paz.

Na mesa um vaso minúsculo de cacto. Espetada em areia, na haste negra luzia pontinho escarlate.

– Incenso indiano, querido, para roubar teu coração!

Na janela a tarde bruxuleava. Envolto na nuvem adocicada, tossiu de leve: Ai, só me falta crise de asma.
– Muito distinto!

O herói tomou-lhe as mãos e quis beijá-la, mas desviou o rosto.

– Que tanta pressa! Nem me achou bonita.

Um passo atrás, que a pudesse admirar: cetim negro, três voltas do colar dourado. Boca inchada de batom. Cabelo preto retinto, olho de sombra roxa – a última encarnação de Mata Hari.

– Está linda, meu bem.

A menina que escrevia bilhete no intervalo das aulas: Desta mujer que te quiere mucho, mucho, mucho! Travou das mãos, cruzou-lhe os braços nas costas:

– Agora não escapa.

O herói beijou o ar, galinha cega bicando às tontas. Ela sacudiu a cabeça com gritinhos de terror.

– Por que me convidou?

– Falar com você.

– Insistiu que estava sozinha. Não pensei que para conversar.

– Cruzes! Nunca imaginei você queria isso. Afastado na ponta dos braços:

– O mesmo olhar inocente do menino. Você é inocente?

– Você bem sabe — e forcejando para atraí-la, conseguiu derrubar um brinco.

– Viu o que fez?

– Depois eu acho.

– Ai, que horror! Me solte um pouco. Que tal um cigarro? Com dedos de ponta amarela acendeu um fósforo.

– Fuma demais.

– Tão aflita. . .

– Se quer, vou embora.

– Não — e segurou-lhe a mão, ainda com o fósforo. — Olhe: do lado que cair a cabeça está o meu amor.

A cabecinha negra rolou para ele.

– Gosta de mim, querido? Preciso tanto de alguém. Tão só desde que a mãezinha morreu.

– E teu marido?

– Coitado do Vivi.

Espreguiçavam-se nos cantos as primeiras sombras da noite.

– Quer umas uvinhas, querido?

Na ponta do filete ardia a brasinha — Ivone apresentou-lhe o prato com uvas geladas e um guardanapo engomado. No outro lado da mesa, o rosto em nuvem azul de fumaça. Cruzou a perna, exibiu o chinelinho de pompom vermelho.

– Nervoso?

– Nem um pouco.

– Eu sim. Nunca enganei o Vivi. Boa a uva, não é?

– Ótima. Você quer?

– Já provei.

Batia o cigarro no vasinho de cacto. Ali no ombro uma pinta de beleza.

– Um beijinho na tua pinta! No estremeção de peixe arisco:

– Sinto cócega. Ah, se o Vivi. . . Nem quero pensar!

– Onde é que ele está?

– Por aí.

– É bom para você?

– Muito. Atencioso, bem educado.

Apanhou na radiola o retrato de moldura prateada.

– Se não é parecido com você. Por isso goste dele. O primeiro beijo lá na varanda?

– Eu podia esquecer? — e roçou o lábio no ombro, errou a pinta. — Você era virgem?

– Que pergunta.

– É certo o que dizem do Vivi?

– Bem que noivo diferente. Pobre de mim, chorei de alegria. Moço prendado, falava línguas.

Só beijinho de muito respeito. Uma educação inglesa. Depois você sabe.

– Que foi que houve?

– Abri de repente a porta: aos beijos com o filho do porteiro! Aspirou o cigarro ao ponto de recolher as bochechas.

– Simpático teu apartamento.

– Quer conhecer?

Ivone indicou a cozinha. Abriu a porta do quarto:

– Desculpe a desarrumação.

O quarto em perfeita ordem, duas camas de solteiro. Desta vez conseguiu beijá-la, sem que retribuísse.

– Espere. Limpar os lábios.

– Mais um beijinho.

– Não quero manchar tua camisa.

Apanhou lenço de papel sobre a penteadeira.

Ele observou as costas até achar a pinta — agora deixá-la nuazinha. Junto da cama, a lâmpada no garrafão azul.

– Muito original.

Olhando-o pelo espelho:

– Não é mesmo?

Voltou-se: rubros como antes, grossos de batom. Ele começou a beijar- lhe o pescoço, uma veia pulsava forte. Correu os dedos, esquecidos na nádega — louco por vestido com botão.

– Como é que é?

– O que, meu bem?

– A gente tira?

– Que pressa, cruzes! — o biquinho de contrariedade. — Conversar um pouco.

– Tenha paciência, filha. Não é hora. Aborrecida, afastou-se dois passos:

– Está bem. Tire a roupa.

Sacou o vestido pela cabeça, tanta prática que nem se despenteou. Ele tirou o paletó.

– Um cabide?

– Penduro aqui mesmo.

De costas, jogou a calça ao pé da cama. Virou-se e o que viu? Ela de sutiã, anágua, chinelinho de pompom. Em cueca, nosso herói investiu. Ergueu a saia, surpreendeu a coxa no espelho — a matrona é avó torta da donzela. Para se consolar, fechou o olho e fungou-lhe no pescoço. Repelão violento o fez cambalear:

– Que é? Que foi?

– Espere um pouco.

Acendeu o cigarro, apanhou no guarda-roupa uma toalha, que estendeu sobre a colcha encarnada.

Nelsinho despiu a cueca, apenas de camisa e sapato. Ela o encarou e, a mão atrás, abriu o sutiã: horrendo peito flácido. Excitadíssimo ao vê-la tirar a calcinha, só de anágua. Que se debateu aflita:

– E o brinco?

– Que brinco? Ah, depois eu acho.

– Como é apressado, que horror! Vou lavar as mãos.

– Agora não. Depois.

– Tem de ser já.

Sem se confessar deprimido, o herói exibiu-se no espelho, admirou as suas graças. De frente e de perfil, erguendo a aba da camisa — grande cadela, deixa estar, ela me paga!
Ivone saiu do banheiro, soltou a anágua, pisou sobre ela — nua, cigarro na boca! Desviou-se mais uma vez do abraço:

– Não tira o sapato?

Foi sentar-se na cama, acendeu novo cigarro na brasa do outro.

Nelsinho livrou-se do sapato. Trêmulo, beijava-lhe o braço, o pescoço, a orelha — lembra-se, querida, a noite na varanda?

– Cuidado. Eu te queimo.

Fumava sem pressa, a boca feroz, olho no teto.

– Sossega, meu bem. Olha a cinza na colcha.

Ergueu-se no cotovelo, amassou o cigarro no cinzeiro. De repente envolveu-o num abraço apertado. Sem explicação, deitou a gemer alto: Ai, ai, ai! Empurrou-o, sacudiu a cabeça:

– Bonito o teu olho esquerdo!

Agarrou-o com violência, entre ais lancinantes. O rosto afundado no cabelo, Nelsinho espirrou duas vezes.

– Que foi, bem? Resfriou?

– A velha asma.

Sem aviso, a defender-se com unha e cotovelo:

– Me machucando. Trocar de posição. Mais para baixo. De mau jeito.

Não desmanche o penteado.

Ele seguia as instruções, frustrado e miserável. Ivone enlaçou-lhe o pescoço e beijou-o, a gemer fora de tom. No meio do beijo, estremeceu a pálpebra, aos poucos abrindo o olho. Fixou-o no fundo da pupila, franziu a testa. Nelsinho começou a resfolegar, lavado de suor frio.

– Nervoso, bem? — melíflua, suspirou a bela.

Em desespero, fechando o olho, tornou a beijá-la: boca escarninha, cheia de dentes. Fio de baba escorreu no queixo, ela desviou o rosto:

– Incomodou-se hoje, não foi?

Inibido pela expressão de censura, o sulco na testa acusadora, ainda pediu:

– Me beije, querida.

– Não fique nervoso. Já passa.

– Você é que sabe — a voz sumida.

– Isso acontece.

Na separação dos corpos suados um estalo obsceno. Nelsinho deixou-se rolar de costas.

– Pois é. Acontece a qualquer um — com amargura medonha na alma.

– Bem quietinho — as palavras untuosas de doçura. — Como eu e meu marido.

Compassiva, afofou o travesseiro, que descansasse a cabeça. Alcançou lencinho na gaveta, enxugou-lhe a testa em agonia. Dois cigarros na boca, acendeu-os, estendeu-lhe um.

– Primeira vez? — a menina inocente na varanda. Não queria conversa, preocupado em não se distrair.

– Nunca me aconteceu.

– Será que das uvas? — os seios sacolejando com o risinho de pouco caso.

– Se a gente ficasse de pé?

De pé, não deu resultado: a visão medonha da nádega no espelho. Depois, sentados. E deitados retomaram os cigarros. Nelsinho de costas, ela apoiada no cotovelo, a soprar-lhe a fumaça no olho. Com a mão livre, Ivone ofereceu entre o indicador e o polegar o seio opulento; sem entusiasmo, ele sorveu o leite mais triste. O coração pulsava no travesseiro e rangia no colchão. Tornou o suor a escorrer-lhe da testa.

– Igualzinho ao Vivi.

Ivone aspirou fundo, soprou deliciada pelo nariz: uma vez com um homem. Abordada na rua. Na própria lua-de-mel. Nunca soube quem era. Em vez de indignar-se, recolheu-o no apartamento. Tristonho, Nelsinho observava o desejo afoguear-lhe as faces, rouca de perturbação. Engoliu em seco: esmagou a boca de beijos, com receio de que o empurrasse para rematar a frase. Entreabriu o olho a gozar o triunfo, notou a ruga incrédula na testa. Ai dele! a exaltação gloriosa esvaiu-se em derrota sem remédio.

– Não se canse tanto, meu bem. Pode ter uma coisa!

Concluiu em sossego a história, na verdade muito interessante.

– Com calor? Que abra a janela?

– Fique quieta. — E com humildade. — Não sei o que… A primeira vez.

– Meu maridinho é bem assim.

A vez do herói acender os cigarros. No silêncio, choro de criança no apartamento vizinho, um relógio ao longe deu as horas. Último clarão do crepúsculo na janela. Chegou até ele a fragrância enjoativa do incenso: Deus, ó Deus, por que não morri de asma aos cinco anos?

Ivone saltou da cama, os peitos bamboleantes, foi apanhar um fósforo na sala. Voltou com o pratinho:

– Não quer acabar as uvas?

Deitado, beliscou dois e três grãos. Chupou o sumo, devolveu a casca ao prato. Apanhou outro bago. Tão desconsolado, em vez de cuspir, engoliu a semente e a casca.

Pesquisadora – Rose Fernandes.

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