Paulo Cotias (*)
Reza uma lenda (sem nenhuma pretensão de autenticidade) de que a história de Judas teria sido um tanto diferente. O que todos sabem é que o empertigado ex-discípulo havia tentado uma vaga naquele grupo de galileus após ter ouvido falar por aí numa conversa sobre um novo reino que estaria prestes a surgir. E onde um reino novo surge, também com ele aparecem novas oportunidades e isso é excelente para os negócios e, claro, para os gananciosos.
A vida em Queriote não andava lá essas coisas. Num belo dia, como funcionário contador de uma pequena corporação de mercadores, o ainda estafeta achou que mudaria a sua sorte vendendo informações de seu mestre para os grandes controladores da Rota do Incenso. Realmente conseguiu assumir o lugar do mestre e se tornou um burocrata cheio de empáfia e que não tinha o menor pudor de causar danos aos seus antigos colegas, desde que isso atendesse aos interesses dos seus novos patrões. Até que um dia seus patrões perderam o controle da rota para outro grupo e, sem o poder que o sustentava, Judas teve voltar a trabalhar no mesmo ambiente e com as mesmas funções daqueles que ele tanto prejudicara com suas ambições. E, conhecendo Judas como nós o conhecermos, isso não duraria por muito tempo. Resoluto, sabia que era hora de mudar de dono.
O que sabemos ainda é que as habilidades de Judas o levaram a controlar as finanças do grupo dos galileus. Como era o único “estrangeiro”, ganhou o apelido de Iscariotes, o “que veio de Queriote”. O que os teólogos ainda discutem é sobre qual habilidade de Judas foi decisiva para as necessidades do grupo, a de contador ou a de traidor. Mas isso deixamos para os exegetas. No fim das contas, o desfecho dessa história já é conhecido. Ou não. Aí entra novamente a lenda.
Para trair o Mestre, Judas teve que arrumar um novo figurão. Só que dessa vez não poderia errar. Até que um jovem e inescrupuloso político daquele tempo, ansioso por consolidar-se definitivamente entre os fariseus e os romanos, decidiu patrocinar Judas. E o contrato foi fechado em trinta moedas de prata que, naquele tempo, equivaleria mais ou menos ao preço de um escravo. Ou seja, dali por diante, em troca do Mestre e por tabela de todos os seus seguidores, Judas estaria ligado para sempre ao seu novo chefe e este, por sua vez, percebeu que alguém como Judas seria interessante: deslumbrado, suficientemente perverso para realizar tudo o que o precisasse na sua escalada ao poder e, enquanto fosse alimentada sua ganância e o seu ego, confiável.
Só que tudo deu errado. Ou quase. Com a morte do Mestre, o tal reino que Judas esperava não rolou. Para quem estava acostumado com a fama e com cargos, teve que se contentar em voltar para o antigo emprego. O problema é que à essa altura, a fama de traidor e sem-vergonha já tinha pegado. O que fazer? Esperar que o patrão colasse em algum novo figurão da província ou mesmo do Império. Mas até lá, Judas tentou dar uma limpada na sua barra. Tentou se passar por autoridade dos contadores e economistas, escrevia, publicava, recitava e participava dos podcasts daquele tempo. E aqui a lenda fica obscura. Não se sabe se ele conseguiu voltar aos cargos de prestígio, se prejudicou tantos outros ou foi perder as botas em seu antigo emprego em um lugar distante. Os evangelistas, em sua sabedoria, provavelmente encurtaram a sua história, pendurando-o na corda da traição. Se a lenda é ou não verdadeira, pelo menos fica a lição sobre os seus estragos.
Paulo Cotias é psicanalista e escritor. Visite o site www.psicotias.com