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Crônica / Conto

É PROIBIDO FALAR AO MOTORNEIRO

Era muito grande a surpresa do velhote que, ao receber alta após vinte e dois anos acamado (reuma­tismo infeccioso), pela primeira vez saía à rua.

Andava pelo Rio como se estivesse fazendo turismo numa cidade a que nunca fora. Tudo mudado, tudo tão lindo e tão diferente. O aterro, os gramados em volta de postes que mais pareciam perna de ema (quando queimar uma luz como é que mudam?), o monumento ao soldado desconhecido, tudo era novidade. Trocaram a roupa da cidade durante sua enfer­midade.

Quis ir à Galeria Cruzeiro tomar um chope no Bar Nacional e lá encontrou uma cidade em pé, de mil andares, e se contentou com uma laranjada no Bob’s. O Tabuleiro da Baiana, os bondes, por onde andavam? Estaria perdido? Poderia perder-se numa cidade que era sua apenas por ter ficado tão pouco tempo (vinte e dois anos) com aquele reumatismo idiota? A Rua das Marrecas tinha o nome de um po­lítico e havia um prédio encimando o Cine Metro onde ele assistira, quinze vezes seguidas, a Greer Garson em Rosa de esperança. E a Lapa, meu Deus! O que fizeram com a minha Lapa? Pelo menos a igreja está de pé, mas aquilo é novo, aquilo lá não existia, no meu tempo não tinha aquilo, roubaram os trilhos? O que fizeram dos trilhos?

O homem andava, na sua caminhada de reconhecimento, sem saber se devia aplaudir ou vaiar o progresso, já que em nome do progresso tudo tinha sido feito e modificado. Saí de casa a caminho da casa do amigo Vergara, com quem jogava xadrez nos tempos idos. De sua casa, na rua Taylor, até a casa do Vegara, na Santo Amaro, costumava ir de bonde (qualquer um servia, porque todos passavam no Largo do Machado), mas hoje estava disposto a ir a pé. Sabe lá se não acabaram também com a Praça Paris!

E o homem ia andando, sempre com o olhar circular pelos cantos da cidade. O passeio Público cercado. Se está cercado deixa de ser público!

Sem menos esperar, quase caiu num buraco.Dentro do buraco um homem, com um capacete prateado na cabeça, usava uma pá com a qual aumentava o buraco, jogando no asfalto a terra que dele tirava.

— Alô — disse o convalescente.

— Alô resmungou, sem muita vontade, o trabalhador.

— O que é que o senhor está fazendo aí? perguntou o reumático ao homem que cavava.

— Cavando — disse o homem ao velho.

Vejam só. Além dos muitos buracos que há na cidade, em vez de fechá-los, o governo trata de abrir outros. Então era isso. Os buracos eram feitos com a concordância do governo. Ou talvez por determinação governamental.

— Fazendo um buraco, não é? — quis certificar-se o reumático.

— É, um buraco — precisou o cara de capacete metálico.

Exatamente o que ele pensara. Uma barbaridade. Onde estão as Forças Armadas, que permitem este descalabro? Tiram-se os bondes e dão-se buracos. Bela política, essa!

— E pra que fazer um buraco, moço?

— Progresso, né? — rezingou o homem que cavava e cavava, jogando terra, algumas vezes, sobre os sapatos do velho que o aborrecia, olhando-o do alto do buraco.

Que progresso mais idiota. Depois, aposto que nem põem placas avisando que ali há um buraco, vem uma criança.

— Feche este buraco — ordenou valendo-se do seu título de cidadão.

— Não chateia! — repeliu o operário.

— Este buraco é um perigo. É um atentado à segurança pública. Como cidadão, eu ordeno: jogue no buraco esta terra — completou, enquanto empur­rava com o pé número 35 um punhado de terra que se espalhou pelo metálico capacete do trabalhador.

— Pára de jogar terra aqui, cara. Este buraco é para as obras do metrô.

Foi como se falasse latim ao Lampião. Metrô? Não teria ele querido dizer Metro? Não seria a insta­lação de mais um cinema?

— Metrô — interrogou o velho que saía à rua após vinte e dois anos de leito. — Não será Metro?

— Metrô, cara. Um trem.

Era o que faltava. Botar um trem ali, em pleno Jardim da Glória. Bolas ao progresso, que tira os bondes, tão fresquinhos e baratos, e, no seu lugar, coloca vastíssimos trens, de ruído insuportável. Agora é que ninguém dorme, da Conde Lage até nem se sabe onde.

— Que trem é esse? — questionou o homem contra o progresso.

— Será possível? — sofreu o operário que cavava às duas da tarde, sob um sol de meio-dia (era janeiro).

— Diga. Que trem é esse? Na qualidade de cidadão, eu exijo uma explicação — insistiu, zangado, o homem.

— Olhe, meu amigo. Metrô é um trem que anda por baixo da terra. Faz-se um túnel debaixo do chão, botam-se os trilhos e o trem vai pelos trilhos — explanou o empregado das obras do metrô o melhor que pôde, para encerrar, de uma vez, o assunto.

— Por baixo da terra? E ninguém respira?

— Há ventiladores.

— E a gente entra no trem de que modo?

— Há entradas. Vai haver uma entrada ali (apontou longe), o senhor compra a passagem, desce as escadas, o trem vem, o senhor entra e vai.

— Muito bem. É o progresso, não é?

— É.

— E, sendo debaixo da terra, não suja a roupa, nem…?

— É um túnel! — irritou-se o operário. — O trem corre dentro do túnel.

— Maravilhoso — admitiu. — Maravilhoso!

— Agora dê licença — pediu o funcionário, voltando a jogar terra sobre o asfalto lá em cima.

Um trem por baixo da terra. O governo está trabalhando, mesmo. Estava até arrependido de ter pensado as coisas tão antigovernistas que pensara. Ainda bem que ninguém ouviu. Podia ser tomado como um sujeito anarquista.

— E quando fica pronto?

— Hein?

— Esse trem que o senhor falou. Demora para ficar pronto?

— Um pouco.

— Mais ou menos quanto tempo?

— Uns quatro anos.

— Ah, é muito, não posso esperar.

E dirigiu-se mesmo a pé para a casa do Vergara, na Rua Santo Amaro.

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