Nélida Piñon (1937/2022)
Os vizinhos o chamavam de pastel. E a mãe, enternecida, repetia, meu pastel amado. A alcunha devendo-se à gordura que Oscar jamais combateu, mesmo através de rigorosos regimes. Certa vez viveu de água por cinco dias, sem o corpo reagir ao sacrifício. Após o quê aceitou a explosão do apetite e esqueceu o próprio nome.
Desde cedo, habituou-se a medir a idade pelos centímetros da cintura em acelerada dilatação, borrando os anos festejados com bolos, feijoadas e travessas de macarrão. Por isso, sentiu-se logo velho entre os jovens. Sobretudo porque nenhuma roupa disfarçava as suas protuberâncias. Se ao menos usasse saias godés, esconderia aquelas regiões do corpo que lhe davam forma de pastel.
Insurgia-se constantemente contra um destino que lhe impusera um corpo em flagrante contraste com a alma delicada e magra. Especialmente quando os amigos admitiam sem cerimônia a falta que ele lhes fazia junto ao chope gelado. E só não mastigavam Oscar ali na mesa do bar por temerem as conseqüências. Mas beliscavam-lhe a barriga, queriam à força extrair do seu umbigo uma azeitona preta.
A casa se ensombrecia nos aniversários. A mãe apagava a metade das luzes. Só as velas do bolo iluminavam os presentes sobre o aparador. Sempre os mesmos, escovas de cabo longo para o banho, pois a barriga não lhe deixava alcançar os pés, e cortes de fazenda de incomensurável metragem. Depois de assoprar as velas, exigia que o espelho lhe mostrasse o próprio rosto constituído de inúmeras trilhas em torno dos olhos, bochechas flácidas, o queixo multiplicado. Via as extremidades do seu corpo como se amassadas pelo garfo de cozinha, com o propósito de evitar que as sobras da carne moída fugissem da massa de farinha, manteiga, leite, sal, de que se formava.
Apesar da sua visível mágoa pelos pastéis, comia dezenas deles por dia. E não os podendo encontrar a cada esquina, abastecia a sacola com óleo de soja, frigideira, pastéis por fritar, e discreta chama que o fervor do seu hálito alimentava. Nos terrenos baldios, antes de fritá- los, afugentava os estranhos que lhe queriam roubar a ração.
O seu corpo amanhecia sempre diferente. Talvez por certas gorduras deslocarem-se para outro centro de maior interesse, em torno do fígado, por exemplo, ou por conquistar às vezes quatro quilos em menos de dezesseis horas. Um desatino físico que contribuía para destituí-lo do orgulho. Do orgulho de ser belo. Em troca desabrochando em seu coração grande rancor contra os amigos que não o tinham ainda devorado naquela semana, apesar de cada vez mais se parecer ao pastel vendido na esquina.
Na hora de maior tristeza, agarrava-se à medalhinha de Nossa Senhora de Fátima em torno do pescoço, sob cuja proteção a mãe o entregara, à falta de uma santa que especialmente resguardasse os gordos. Em casa, assoviava para disfarçar o desgosto. Mas as lágrimas de certos prantos vinham-lhe tão fortes que molhavam o assoalho que justamente a mãe secava. Ela fingia não perceber. Só quando a poça parecia de chuva, como se a água vencesse o telha- do, a mãe ia com moedas nas mãos até os amigos escalados para ao menos uma vez no mês acompanhar Oscar ao cinema. Os que aceitavam um dia, resistiam ao próximo, apesar do peso do ouro. E já escasseavam, quando o próprio Oscar, que já não cabia em nenhuma cadeira, desistiu de assistir aos filmes de pé.
Aos domingos, as travessas fumegavam sobre a mesa. Oscar se via no lugar do assado, e trinchado com garfo e faca de prata, em meio à exuberância familiar. Para evitar essas visões punitivas, recolhia-se ao quarto nesses dias.
No verão, seu tormento intensificava-se, pois escorria-lhe do peito, em vez de suor, azeite, vinagre e mostarda, temperos prediletos da mãe, que se comovia ante as graças de tal natureza. Acariciava então os cabelos do filho, extraía-lhe alguns fios encrespados e, no quarto, os repassava um a um, na aflição de descobrir por quanto tempo teria em casa o filho incólume e protegido.
Este consolo materno Oscar recolhia à caixa destinada a estocar as sobras de gordura da sua frigideira itinerante. E, querendo recompensar o sacrifício da mãe a beber-lhe o azeite e o vinagre do peito, sorria para em troca ela exclamar, que beleza o teu sorriso. É o sorriso da euforia, filho. A estas palavras sucediam-se as que lhe feriam o coração e que a mãe, em prantos, não conseguia evitar: Ah, meu pastel amado!
A expressão deste afeto, que seu disforme corpo não podia inspirar, arrastava Oscar para o quarto, amargurado pela erosão das palavras maternas, que só pretendiam atraí-lo para dentro da frigideira abrasada de zelo, paciência e fome.
Previa para si um desfecho trágico. Gomo abutres, os amigos dispostos a bicar a sua carne. O quadro da própria dor levava-o a ler nas paredes um minucioso balanço dos seus haveres. Duvidava da riqueza da terra. A coluna das dívidas crescera de modo a jamais quitá-las quantos anos vivesse. Aos homens devia a sua carne, porque eles tinham fome. E embora eles lhe devessem um corpo de que se orgulhar, não tinha como cobrá-lo.
Depois do banho, já perfumado, imaginava como seria o amor entre criaturas, os corpos na cama libertos do desgoverno de uma gordura inimiga. Nestes instantes, iludido com algum modesto saldo, chegava a se ver batalhando os adversários. Bastava porém um gesto brusco, para a realidade falar-lhe de uma obesidade em que não havia lugar para a poesia e o amor. E, em seguida, a perspectiva de ser comido com garfo e faca transformava-se na mais obscura questão.
A mãe combatia seus olhos esgazeados, a alma sempre de luto. O que há de ruim no mundo para olhar-nos com esta suspeita? Oscar regalou-a com um broche de platina, que o cravasse para sempre no peito. Da sua carne deviam pingar gotas de veneno e a certeza da própria cruz. Diante do enigma que Oscar lhe propunha, a mãe, que ao longo da vida repudiara as frases límpidas, pronunciou, ah, meu pastel tão bom filho!
Quanto mais ela enaltecia virtudes que, em verdade, ambos desprezavam, depressa Oscar preocupava-se em eliminar das bordas do corpo resíduos que porventura não haviam cabido dentro do pastel que era ele. Finalmente, abandonou os terrenos baldios, onde fritara seus pastéis. Já não tolerava que o olhassem com uma fome a que não podia atender. Não tinha como alimentar os miseráveis. Eles deviam morrer sem socorro.
À medida que se intensificavam suas consultas ao espelho embaçado, o cristal mal o deixava ver o corpo costurado todos os dias pela eficácia do garfo da cozinha. Vestia-se de pastel a cada manhã. Como represália, instalou a sua poltrona na cozinha, dali saindo só para dormir. Atendia às necessidades básicas, e ao novo hábito de espalhar farinha de trigo pelo corpo. Com as cavidades das unhas engorduradas, recebia as visitas ali, forçando-as a alisarem sua pele polvilhada.
A mãe insurgiu-se contra a grosseria. Não queria os amigos expostos a tal provação. Se ele era prisioneiro da gordura, que a suportasse com dignidade. O filho devolveu-lhe a ofensa com os dentes movendo-se como uma serra elétrica, quase triturou-lhe os braços. E seu desempenho foi tão convincente, que a mãe passou a proteger os membros com espessas peças de lã, mesmo no calor. De fora deixava o rosto. E quando Oscar cobrava-lhe a presença ao alcance das mãos, esquivava-se sob os casacos e as botas.
Aos trinta anos, Oscar se cansou. Era sua vez agora de comer a quem indicasse pastel. Se havia se prestado a tal papel por tanto tempo, exigia carne humana para o seu apetite. Designaria a vítima com todo esmero. Embora particularmente se inclinasse por pessoas da casa, o sangue fraterno. E, de acordo com seus planos, fingiu-se de cego, tropeçava contra os objetos, para ter os inimigos distraídos. A mãe pediu socorro aos vizinhos que se revezaram junto a ela na primeira semana, para mais tarde a deixarem só. Com tantos encargos, a mãe adotou roupas leves, esquecida das ameaças do filho.
Por sua vez, Oscar surpreendia-se com os encantos da fala. Nunca o viram discursar com tanto arrebato sobre os objetos que justamente lhe faltavam à vista. Recém-descobrindo ao seu alcance o poder de coincidir a sua fome com uma voracidade verbal que estivera sempre em seu sangue, mas a que não dera importância, entretido em defender-se contra os que o queriam atirar à frigideira.
A mãe cedo acostumou-se à sua cegueira. Tinha-o como um passageiro de um túnel sem fim. Descrevia-lhe a casa, como se ali fosse hóspede. Queria-o participante do cotidiano, e ganhava súbitas cores no rosto diante da doçura do filho. Foi quando Oscar abriu os olhos, certo de que vencera. E ali estava ela a sorrir, os braços de fora, o corpo exposto. Rapidamente repassou na memória as vezes que ela, movida pela força do amor, chamara-o de pastel, quase a comê-lo. Logo a mãe, que havendo padecido por ele, surpreendia agora no seu olhar um brilho que não era de candeeiro, de alegria, ou de remota verdade de um filho que mal conhecia. O que a mãe descobria no filho era uma labareda empenhada em viver, e um inequívoco jeito de algoz.
Ela ficou quieta ao seu lado. Oscar tomaria as providências necessárias. Enxergava-o como homem pela primeira vez. Ele aproximou sua poltrona à da mãe, que a havia arrastado para a cozinha. Pediu que se sentasse. Também sentou-se, antes recolhendo alguns fios de cabelos da mulher. E só com o consentimento da mãe passou a vigiá-la.