Paulo Cotias
Uma grande fragilidade da democracia contemporânea provém de uma mudança drástica na maneira como as relações políticas se estabeleceram entre representantes e representados. Os representados vêm sendo considerados e tratados apenas como aqueles que votam. Nessa ótica, as eleições e o voto são as expressões extremamente condensadas de um conceito restrito de democracia. Já os representantes serão aqueles que conseguirem a autorização por meio do voto para que assumam frações significativas de algum poder, seus recursos e formas de exercê-lo.
Os representados, no entanto, não foram apenas reduzidos como votantes, mas despojados da experiência cidadã e fortemente desestimulados a não estabelecer laços comunitários ou sociais. No lugar disso, se tornaram consumidores e os poderes passaram a se comportar como prestadores de serviços. Esse fenômeno é promovido, mantido e chancelado pela visão liberal e mercadológica. Assim, o cidadão não é mais o ser mergulhado na coletividade, mas o indivíduo que quer saber o que vai ganhar com as relações políticas. Ou seja, para um agente político se tornar um representante, precisa do voto e o toma como mercadoria, fazendo o necessário para adquiri-lo dos representados-eleitores, tanto no varejo, quanto no atacado.
Representantes, no entanto, não exercem a sua fração de poder sozinhos. Por mais autocrática que seja a figura de proa, existem compromissos inescapáveis. E, para cada compromisso, um credor. E cada credor tem seu tamanho, seu poder, seus recursos e, não é raro, suas ramificações que flutuam entre as fronteiras da legalidade. O que isso significa? Que é preciso usar o naco de poder, seus recursos, estruturas e instituições para satisfazer aos que ajudaram e ajudam o representante a sustentar-se onde está. E tudo isso tem um custo considerável. Mas não nos iludamos, a figura de proa jamais é um refém. Ao contrário, pode não ser absoluto, mas é quem mais se beneficia. Por outro lado, no caso de as coisas saírem dos trilhos, será igualmente o culpado, assumindo os pecados de todos aqueles que antes comiam fartamente em sua mesa. Ossos do oficio.
Mesmo percebendo esse comportamento dos representantes e naturalizando-o como aceitável, os representados querem alguma coisa. Aqui, os representantes passam a assumir o papel de provedores. Para os que não podem ser pendurados no “ervanário da Viúva” – parafraseando Elio Gaspari – resta a oferta de alguma coisa com a máquina pública, sempre acompanhado do devido estardalhaço. Qualquer coisa “inaugurável” se transforma pela magia do marketing político em sinônimo de grandiosidade e o representante se torna em um passe de mágica no benemérito e laborioso interventor a favor das massas. Um bezerro de ouro. E como poucos param para avaliar o alcance, o custo, a efetividade, a eficiência e as intenções do que é feito, fica fácil até vender o boné dos outros como o seu chapéu. É a arte de transformar o pouco em tudo, como promessa de que basta darmos aquele votinho para “conseguirmos muito mais”.
Aderir a isso é uma escolha consciente. E cada vez mais pessoas tem jogado para o alto qualquer escrúpulo para fazer e sustentar escolhas como essa. E é por isso que temos a sensação, correta por sinal, de que governos se sucedem sem que melhorias significativas aconteçam. O problema é que isso sempre pode ser piorado. Por exemplo, em governos neofascistas, esse jogo assume outros contornos ainda mais sombrios.
Paulo Cotias é Professor, Escritor e Psicanalista.