Na noite em que faleceu Machado de Assis, quem penetrasse na vivenda do poeta, em Laranjeiras, não acreditaria que estivesse tão próximo o desenlace de sua enfermidade. Na sala de jantar, para onde dizia o quarto do querido mestre, um grupo de senhoras – ontem meninas que ele carregara no colo, hoje nobilíssimas mães de família – comentavam-lhe os lances encantadores da vida e reliam-lhe antigos versos, ainda inéditos, avaramente guardados em álbuns caprichosos. As vozes eram discretas, as mágoas apenas rebrilhavam nos olhos marejados de lágrimas, e a placidez era completa no recinto, onde a saudade glorificava uma existência, antes da morte.
No salão de visitas viam-se alguns discípulos dedicados, também aparentemente tranqüilos.
E compreendia-se desde logo a antilogia de coração tão ao parecer tranqüilos na iminência de uma catástrofe. Era o contágio da própria serenidade incomparável e emocionante em que ia a pouco e pouco extinguindo-se o extraordinário escritor. Realmente, na fase aguda de sua moléstia, Machado de Assis, se por acaso traía com um gemido e uma contração mais viva o sofrimento, apressava-se a pedir desculpas aos que o assistiam, na ânsia e no apuro gentilíssimo de quem corrige um descuido ou involuntário deslize. Timbrava em sua primeira e última dissimulação: a dissimulação da própria agonia, para não nos magoar com o reflexo da sua dor. A sua infinita delicadeza de pensar, de sentir e de agir, que no trato vulgar dos homens se exteriorizava em timidez embaraçadora e recatado retraimento, transfigurava-se em fortaleza tranqüila e soberana.
E gentilissimamente bom durante a vida, ele se tornava gentilmente heróico na morte…
Mas aquela placidez aguda despertava na sala principal, onde se reuniam Coelho Neto, Graça Aranha, Mário de Alencar, José Veríssimo, Raimundo Correia e Rodrigo Otávio, comentários divergentes. Resumia-os um amargo desapontamento.
De um modo geral, não se compreendia que uma vida que tanto viveu outras vidas, assimilando-as através de análises sutilíssimas, para no-las transfigurar e ampliar, aformoseadas em sínteses radiosas – que uma vida de tal porte desaparecesse no meio de tamanha indiferença, num círculo limitadíssimo de corações amigos. Um escritor da estatura de Machado de Assis só devera extinguir-se dentro de uma grande e nobilitadora comoção nacional.
Era pelo menos desanimador tanto descaso – a cidade interira, sem a vibração de um abalo, derivando imperturbavelmente na normalidade sua existência complexa, quando faltavam poucos minutos para que se cerrassem quarenta anos de literatura gloriosa…
Neste momento, precisamente ao enunciar-se este juízo desalentado, ouviram-se umas tímidas pancadas na porta principal da entrada.
Abriram-na. Apareceu um desconhecido: um adolescente, de 16 a 18 anos no máximo. Perguntaram-lhe o nome. Declarou ser desnecessário dizê-lo: ninguém ali o conhecia; não conhecia, por sua vez, ninguém; não conhecia o próprio dono da casa, a não ser pela leitura de seus livros, que o encantavam. Por isto ao ler nos jornais da tarde que o escritor se achava em estado gravíssimo tivera o pensamento de visitá-lo. Relutara contra essa idéia, não tendo quem o apresentasse: mas não lograra vencê-la. Que o desculpassem, portanto. Se não lhe era dado ver o enfermo, dessem-lhe ao menos notícias certas do seu estado.
E o anônimo juvenil – vindo da noite – foi conduzido ao quarto do doente.
Chegou. Não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre; beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-o depois por algum tempo ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu.
À porta José Veríssimo perguntou-lhe o nome. Disse-lho.
Mas deve ficar anônimo. Qualquer que seja o destino dessa criança, ela nunca mais subirá tanto na vida. Naquele momento o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo – no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis – aquele menino foi o maior homem de sua Terra.
Ele saiu – e houve na sala há pouco invadida de desalentos uma transfiguração.
No fastígio de certos estados morais concretizaram-se às vezes as maiores idealizações. Pelos nossos olhos passara a impressão visual da Posteridade.
Euclides da Cunha – 1866/1909.